Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Refinadas bijuterias

Refinadas bijuterias

 

Dois livros -"Olavo Bilac" e "Um Século de Poesia" (antologia poética de Augusto Frederico Schmidt) - nos dão conta de que, muitas vezes, é preferível revisitar as jóias do passado do que garimpar as medíocres bijuterias que nos oferece a modernidade tardia.


Autor cujas "Poesias" (1888) alcançaram em 1977 a 29ª edição e que foi, durante muitas décadas, um dos mais lidos poetas brasileiros - condição que divide apenas com Tomás Antônio Gonzaga, Castro Alves e Augusto dos Anjos -, Bilac se distinguiu também na crônica que se escreveu entre nós em fins do século 19 e princípios do século 20.


Bastaria dizer, como nos informa Ubiratan Machado no excelente prefácio do volume, que também organiza, que Bilac foi escolhido como sucessor de Machado de Assis quando este, no início de 1897, deixou de escrever a crônica dominical da "Gazeta de Notícias", o mais prestigioso jornal do país àquela época.


E Bilac justificou plenamente essa escolha, esgrimindo seu talento de cronista com extrema finura de espírito, elegância de estilo, humor e fundo conhecimento da vida e da sociedade do Rio de Janeiro.


O modesto bonde


A crônica, aliás, era um dos gêneros literários mais em voga naqueles tempos. Que o digam, entre outros, Machado de Assis, Ferreira de Araújo, Medeiros e Albuquerque, Carlos de Laet, Raul Pompéia e Valentim Magalhães. Como sublinha Ubiratan Machado, ao contrário do autor de "Dom Casmurro", Bilac não "era um analista, mas um impressionista", e seu "humorismo espontâneo e jocoso, com uma certa inclinação pela sátira, se diferenciava do humorismo amargo e intelectualizado de Machado".


Algumas dessas crônicas são, como se quer no volume, antológicas, e entre elas não se podem esquecer "Marília", "A Festa da Penha", "Santos Dumont", "O Jogo dos Bichos", "Um Fantasma", "Menor Perverso", "Lutécia", "Os Pássaros de Paris", "O Burro", "O Vício Literário", "As Cartomantes", "Gramáticos", "Eça de Queirós", "Pianolatria" e, talvez mais do que essas, "O Bonde", na qual, ressaltando o caráter democrático e nivelador do veículo, o cronista assim o exalta: "Tu és um grande apóstolo do Socialismo, ó bonde modesto! Tu destruíste os preconceitos de raça e de cor, tu baralhaste na mesma expansão de vida o orgulho dos fortes e a humilhação dos fracos, as ambições e os desinteresses, a beleza e a fealdade, a saúde e a invalidez...".


A crônica de Bilac é um surpreendente e premonitório exemplo de refinado jornalismo literário e uma lição inesquecível da arte de nos contar, com simplicidade, picardia e agudo sentido poético, os acontecimentos que marcaram a vida carioca há quase um século. E lemo-lo como se o fizéssemos hoje.


Em termos estritos de antologia, já não se pode dizer o mesmo da coletânea poética de Augusto Frederico Schmidt organizada por Letícia Mey e Auda Alvim.


Faltam diversos textos fundamentais desse singularíssimo poeta, entre os quais a obra-prima "Os Príncipes", embora a obra do autor esteja muito bem analisada no prefácio de Heitor Ferraz Mello, que ali alinhava observações de extrema pertinência, como aquela em que sustenta que o poeta de fato muito bebeu na fonte da estética modernista, "e ela lhe trouxe, provavelmente, uma liberdade de expressão que Schmidt não teria se se recolhesse apenas às lições pré-modernistas".


E tem ainda toda razão quando observava: "Não é exagerado dizer que ele se aproveitou, por exemplo, do fluxo por vezes onírico da poesia surrealista, mas sempre a seu modo, sempre seguindo suas próprias necessidades, pois para ele a poesia era uma necessidade vital".


Muito estimado por Manuel Bandeira, Dante Milano e Alceu Amoroso Lima, entre outros, Schmidt começou a produzir na década iconoclástica do modernismo de 1922, pois seu primeiro livro, "Canto do Brasileiro", é de 1928.


Mas a essência de sua poesia passa ao largo do ideário modernista, pois logo depois da estréia, aos 22 anos de idade, Schmidt declara que não quer mais o Brasil, a geografia e o pitoresco, e sim perder-se no mundo para evadir-se do mundo. Se formalmente assimilou os valores do modernismo, rejeitou-lhe os cacoetes, a temática monotonamente nacionalista, as acrobacias verbais e as associações surrealistas.


Lirismo confessional


O que há de mais importante em sua poesia é um retorno ao eu, ao lirismo subjetivo e confessional que nos remete à tradição romântica brasileira. Seus ritmos largos, discursivos, grandiloqüentes, às vezes de acentos bíblicos e amiúde elegíacos, evocam uma atmosfera apocalíptica e algo messiânica, na qual aflora um sentimento de libertação entranhado de apelos místicos e inquietações religiosas.


Claro está que não é tarefa das mais fáceis garimpar o que há de melhor nessa poesia caudalosa e vincada de repetições retóricas, e esta talvez seja a razão pela qual os cem poemas selecionados pelas duas organizadoras do volume não oferecem uma visão cabal da grandeza desse poeta único em nossas letras.


Mas Schmidt, como todo grande autor, resiste a tudo. E, na pior das hipóteses, a antologia releva na medida em que, pelo menos, repõe seus versos em circulação, muito embora já o tivesse feito recentemente, e de forma definitiva, a Topbooks, quando publicou, em 1995, a "Poesia Completa -1928-1965", com organização e modelar estudo introdutório de Gilberto Mendonça Teles.


Olavo Bilac

306 págs., R$ 37

seleção de Ubiratan Machado.

Ed. Global


Um Século de Poesia

232 págs., R$ 35

de Augusto Frederico Schmidt.

Ed. Globo


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 12/2/2006