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Realismo socialista

 

Não é exagero dizer que a Revolução Russa, cujo nonagésimo aniversário está agora sendo lembrado (eu ia dizer celebrado, mas esta celebração, se existe, é para poucos) marcou o século vinte. Uma marca que era, a um tempo, política, econômica, social e cultural. Na esteira do movimento de 1917 surgiram diretrizes para a arte, para o cinema, para o teatro, para a literatura. Estas diretrizes podiam ser sumarizadas numa expressão: realismo socialista. O princípio básico do realismo socialista era simples: a arte e a cultura em geral deveriam estar a serviço dos ideais revolucionários. Em outras palavras (mas estas nunca eram admitidas pelos líderes), tratava-se de propaganda.


É preciso dizer que o realismo socialista não fazia parte do ideário da revolução de 1917. Ao contrário, esta estimulava a inovação, a diversidade; a revolução deveria se estender à arte. O realismo socialista, com sua rígida disciplina, surgiu depois, com Stalin, que, sob todos os aspectos, era um ditador. Como ditador, intervinha em tudo, inclusive e principalmente na cultura. Nisto, Stalin não era muito diferente de Hitler. Este condenava a “arte degenerada” dos judeus, a “ciência judaica”, que era a psicanálise. Stalin fazia a mesma coisa, só que seus inimigos eram os burgueses, e, sobretudo aqueles que eram chamados de contra-revolucionários. Algumas vezes as duas ditaduras coincidiam; assim, na Rússia stalinista a psicanálise foi, como na União Soviética, banida. E a arquitetura do período de Stalin era muito parecida com aquela da Alemanha nazista: maciças e gigantescas construções, cujo evidente objetivo era apequenar e esmagar os súditos que por ali passavam.


Nas artes plásticas qualquer tentativa de renovação era condenada. Só se admitia a pintura clássica, mas sempre com temas bem definidos: o estímulo ao trabalho, o elogio aos defensores da pátria. Surrealismo, por exemplo, nem pensar. É verdade que Picasso era comunista, mas, como ele não vivia na ex-URSS, caía na condição de “bom burguês”, de aliado útil. Para os artistas, os personagens principais deveriam ser operários e camponeses (e, durante a guerra, soldados): figuras vigorosas, alegres, com um ar de esperança. Os compositores tinham de produzir música vibrante; suas obras também giravam em torno de temas ligados à vitória do comunismo. E o mesmo se pode dizer de cineastas e dramaturgos.


Escritores eram particularmente vigiados. Aqueles que seguiam a linha partidária eram prestigiados e inclusive tinham direito a várias mordomias – clássica era a datcha, a casa de campo, onde, esperava-se, eles escreveriam obras-primas, que, no Brasil, eram publicadas na coleção “Romances do Povo”. Nosso grande expoente na literatura engajada foi Jorge Amado, em sua primeira fase, e é de se imaginar a dificuldade que tinha de submeter seu talento e seu temperamento baiano às rígidas diretrizes. Nos Estados Unidos vários escritores pertenciam a esta corrente, como foi o caso de Michael Gold que, justamente por ser um militante do Partido Comunista, tinha pouco tempo para escrever ficção. Nos contos em que, de alguma forma, conseguiu escapar ao rígido modelo, seu talento aparece de forma brilhante. Já no conto Mais depressa, América, mais depressa!, os Estados Unidos são retratados como um trem que corre loucamente para o desastre. Quando este ocorre, aparecem, no horizonte, duas pessoas: um camponês com uma foice na mão, um operário, segurando um martelo. Os dois salvarão as vítimas da tragédia capitalista. Escritores que, como Isaac Babel, não se submetiam às determinações partidárias corriam riscos; Babel morreu num campo de concentração stalinista. E escritores considerados “burgueses” eram rechaçados. Na Tchecoslováquia, Franz Kafka era desprezado. No Brasil não foram poucos os autores que enfrentaram a hostilidade do comunismo ortodoxo. Érico Veríssimo, que havia morado e trabalhado nos Estados Unidos era visto com suspeição; já Clarice Lispector recebia um tratamento condescendente, porque era uma escritora “intimista”.


A abertura cultura, que recebeu o apropriado nome de “degelo”começou logo após a morte de Stalin, em 1953. Escritores e poetas, como Ievgueni Evtuchenko, arriscavam-se a escrever obras que mostravam relativa independência. A queda do Muro de Berlim completou o processo. Hoje, o realismo socialista é apenas uma lembrança. Mas a substituição dele por uma arte que gira em torno ao próprio umbigo, uma arte que leva o individualismo ao paroxismo só indica que o pêndulo oscilou para o lado oposto. Fiel a si mesmo, o artista reflete, contudo, os problemas e as aspirações do mundo em que vive. É, como dizia Stendhal, um espelho que passeia pela rua, mas um espelho vivo, que não só reflete imagens mas acrescenta a elas aquela dimensão pessoal que apenas a verdadeira arte proporciona.


Correio Braziliense (DF) 26/10/2007

Correio Braziliense (DF), 26/10/2007