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Presidencialismo de colisão

 

Falamos, o tempo todo, em presidencialismo de coalizão. Promessa enganosa ou desculpa inútil. Na prática política cotidiana o que se observa é o choque, ou a mera barganha, o conflito de interesses menores ou ambições maiores. A essa contracena inóspita se deve chamar de presidencialismo de colisão, sustentado pela democracia de consumo.

As prateleiras dos supermercados eleitorais estão abarrotadas de produtos com prazos de validade vencidos. É evidente o baixo nível do consumismo. A democracia de consumo não produz qualidade; produz quantidade. E o propalado empreendedorismo, até agora, tem sido escravo dócil das leis do consumo.

Não se deve esperar muito dos "intelectuais orgânicos" ou dos comissários de plantão. Qualquer que seja nossa posição sobre o desempenho político, a verdade é que se tornou flagrante o estado terminal da nossa representação, a falência múltipla dos órgãos deliberativos.

A multiplicação ociosa da máquina administrativa, travada pelo balcão de emprego, se acentua na hora de partir o bolo. Cada um quer ficar com a fatia maior. Isso só aumenta o alto custo do Estado.

Não é muito difícil identificar, na cena pública atual, o sequestro da qualidade. Na dança partidária, nas coligações engendradas, no "toma lá, da cá", salta à vista de todos o descaso ético. Como sair da crise com os mesmos atores da crise? Ou com o mesmo repertório de falsidades?

A tão adiada reforma eleitoral não sai, ou sai falsificada. A sorte fica entregue aos reformadores de plantão. Mas como podem reformar logo aqueles que precisam ser reformados? As interrogações se sucedem. E com elas a multiplicação das siglas partidárias de aluguel.

A degradação corporativa se divide entre a privatização e a partidarização. A corrupção vem a ser a pior forma de privatização, porque altamente individualista. Já não é o "rouba, mas faz", e sim o "rouba, e não faz". Tudo em meio ao despreparo e à derrocada cultural da "pátria educadora".

O projeto nacional é deficiente e deficitário em educação e cultura. Caso em que se torna impossível superar os defeitos de fabricação e a fadiga de material.

Por que então não incorporar, nas sinalizações reformadoras, o recurso ao recall, retirando de circulação o cheque em branco eleitoral?

A sociedade que tem o direito de concedê-lo tem igualmente o de retirá-lo. O recall é uma entidade já incorporada à Constituição de vários países democráticos.

Trata-se de uma devolução justa e oportuna. Quem não deu certo, vaza. Está mais do que provado que o cheque em branco eleitoral é pelo menos uma imprudência política. A possibilidade de devolução do mandato eleitoral só fortalece a democracia. Sempre tendo em mente que o Estado não é propriedade privada de nenhum partido.

A democracia que conhecemos, ou que desconhecemos, populista e não popular, em que pese a retórica desenfreada, também se encontra no vermelho.

Cabe-nos agora, a todos, sem diferença de posição social, de cor, credo ou gênero, bem distante do viés partidarista e das patrulhas ideológicas, a tarefa inadiável de reinvenção da democracia.

Somente ela nos retirará da incômoda condição de forte candidato à medalha de ouro na Olimpíada internacional da desigualdade. Para isso vamos precisar de um presidencialismo realmente de coalizão.

Folha de São Paulo, 05/11/2015