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Presença de Laudelino

 

A beleza do idioma de Portugal e do Brasil teve pouquíssimos cultores que a realçassem com o amor, a competência, o conhecimento da matéria e a constância de Laudelino Freire. À língua portuguesa dedicou ele o seu tempo de vida, a sua inteligência, o seu bom gosto, o seu senso de ritmo. Servia a ela, com a inteireza de um apaixonado lúcido.


Na apresentação de suas "Regras Práticas", oferece uma lista de livros destinados a ajudar o estudioso na aquisição de uma linguaggem correta e na conquista de um estilo, seguro e harmonioso, no bem falar e no bem escrever.


Tanto na poesia como na prosa, esforça-se o escritor por atingir um estilo harmonioso. O ritmo das palavras faz parte do ideal de quem escreve e de quem fala. Por causa do ritmo e da cadência, por causa do medo aos sons dissonantes, interpomos letras onde elas não deveriam estar, amaciamos o encontro de sílabas que não se ajustem harmoniosamente.


Nem por outro motivo a língua portuguesa mudou um inaceitável "inventam-o" por um "inventam-no, um "adorar-a" por um "adorá-la". O "n" e o "l" intervêm na frase para que ela seja pronunciada de modo mais agradável. A cacofonia também deve ser evitada, sempre em benefício de uma fluência maior, sem que as características rijas das consoantes se choquem sobre a passividade normal das vogais.


Diz Laudelino Freire, em seu "Linguagem e Estilo", que "não se ensina um escritor a ser harmonioso". A harmonia está ligada mais a um dom interior, resultante, que é, da sensibilidade, da delicadeza ou gosto natural de cada um, embora a experiência também tenha sua influência.


Contudo, há um meio de um orador ou escritor chegar à conquista da harmonia de estilo. Laudelino Freire chama a atenção para esse meio: é o metro poético. Exercitar-se alguém no fazer versos, no aceitar o ritmo que a poesia exige, proporciona, ao prosador, um tipo de musicalidade de que a prosa geralmente carece. "O metro poético é a fonte da harmonia da prosa portuguesa", cita Laudelino. O maior exemplo dessa verdade é Antonio Vieira, que pregava em ritmo de verso.


Um escritor que se tornaria célebre só depois de Laudelino Freire haver terminado sua obra, num romance de 1958, "Gabriela, cravo e canela" usava esta prosa de pura harmonia: "Seus pés reclamavam, queriam dançar. Resistir não podia, brinquedo de roda adorava brincar. Arrancou os sapatos, largou na calçada... A cantar, a rodar, a palmas bater, Gabriela menina."


A marcação de Jorge Amado busca, nesse trecho, dar às palavras um efeito do movimento, alegria e leveza. De José de Alencar e Machado de Assis a Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, têm os melhores prosadores brasileiros tido procedimento semelhante.


Tendo por base a correção da linguagem, ligada a um mínimo de musicalidade, em tudo seguindo a índole da língua, que se evitem repetições de vogais e o choque auditivo de consoantes fortes. No espírito da mímes poética, porém, pode a repetição de sons aumentar a força de versos descritivos, como no exemplo famoso de Virgílio na "Eneida":


"Quadrupedante putrem sonitu quatit ungula campum" que, há cerca de cento e cinqüenta anos, o poeta português José Victorino Barreto Feio precisou de dois decassílabos para traduzir:


"Das patas com o bater em pó desfeito

Soa o chão com o tropel quadrupedante."


A "força impulsiva" do verbo inicial costuma determinar a cadência inteira da frase. Acrescente-se que, se o começo é importante, não o é menos o fim. Assinala o mestre: "Muito em conta deve ter-se o final das frases. Não há equilíbrio ou melodia que se não anule por efeito de um remate frouxo, precipitado ou desastrado." E, citando Quintiliano: "É aí que se respira e se desafoga; é o descanso da leitura; e é cuidando especialmente dos finais que se obterá o efeito musical, completo."


Começo e fim podem também indicar a tensão interna de uma obra mais longa, em prosa ou verso. Críticos literários têm examinado o primeiro período, e o último, de romances famosos além de primeiras e últimas frases de períodos que se distingam pela sua originalidade evidente.


O modo como Laudelino Freire, ao analisar o problema do estilo, dá atenção a esse pormenor de abertura e encerramento de determinado texto, revela o domínio, que tinha, sobre todos os aspectos do arcabouço verbal da língua portuguesa. Foi, assim, natural que houvesse elaborado e publicado o mais completo dicionário brasileiro, o "Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa" que, com seus mais de 208 mil verbetes, foi a base de nossos dicionários posteriores.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 18/02/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 18/02/2004