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Presença de Angola

 

Dou as boas-vindas à escritora angolana Isabel Ferreira, que teve agora seu livro "Fernando D'Aqui" editado no Brasil e vem, com ele, revelar a luta pela adaptação de uma língua européia à literatura nacional de seu país.


A narrativa de Isabel Ferreira não se fixa tanto no estilo como numa espécie de iluminação em que palavras, mesmo oriundas de outras línguas, adquirem aspectos dos idiomas da terra, com étimos quimbundos substituindo alegremente palavras portuguesas, tal como aconteceu no Brasil não só através de influências tupis mas também de palavras que nos vieram da própria África.


Vamos encontrar, no livro de Isabel Ferreira, palavras quimbundas que também são nossas: pitéu, kitute, grana (significando dinheiro mesmo), zanzar, milonga (no sentido de feitiço).


O livro apresenta um bom glossário com suas explicações. Assim, no capítulo em que a narradora, num velório, diz: "É nos óbitos que se gravam os mujimbos", o glossário nos informa que mujimbo é boato.


E é com alegria que encontro no livro a palavra candonga e sua correspondente candongueiro, ambas muito conhecidas de minha infância em Ubá e no Piau.


Antes da independência angolana, já a literatura local passara a ter características próprias. Quando vivi na África, entrei em contato com escritores do mundo africano de fala portuguesa, de Cabo Verde e Guiné a Angola e Moçambique.


Além dos que então se destacavam - Agostinho Neto junto com o Mário de Andrade deles - atuavam ainda no setor Aldo do Espírito Santo, José Craveirinha, Noêmio de Sousa, Antonio Jacinto, Luandino Vieira, entre muitos outros.


Rui Nogar se destacava em Moçambique e dele tenho citado, em artigos e conferências, o seu belo poema "Eu bebeu suruma", dos melhores escritos em português pidgin.


"Fernando D'Aqui" é, na realidade, um longo poema que conta histórias, através das quais aparece todo um mundo que envolve Luanda e Lisboa, que fala de paixão e de compaixão, descreve as cidades e fala de moça que lembra a amante que morrera: "Beijou-me como se fosse a última vez. Amou-me como se fosse a primeira vez."


Eis o começo de um capítulo de "Fernando D'Aqui":


"Ser candongueiro tava fácil... Ganhar a vida levando pessoas pra lá e pra cá e pra um desqualquer sítio de deus, era um negócio que estava a bater de banda."


Ou o começo de um conto: "Se deram encontro assim: - no caso das vidas. Os olhares, um nexo da vontade dos espíritos supernos".


Ele dono e amante do mar. Ela recém chegada da Luanda, com vontade de conhecer as profundezas. Era a imagem da formosura."


O livro é um não-caber de palavras jogadas ao ar, do quimbundo, do português de Lisboa, do quioco, da gíria do Norte de Portugal, do falar do povo angolano do interior, como que num retrato vocabular de regiões cheias de vida. Um vento de magia atravessa as páginas de Francisco D'Aqui. De vez em quando, uma frase assim: "Em Luanda vi que o dia podia ser noite. E que a noite amanhecida no regaço de uma viúva tem doçura..."


Evocações, esperanças e sonhos formam a base do livro de Isabel Ferreira, que nos faz participar do muito que Luanda e Lisboa têm a oferecer e da vida intensa de que a autora participou e participa, desde a guerra da libertação do país até uma longa busca pela ternura que ninguém sabe onde está.


Francisco D'Aqui é livro de leitura obrigatória. Nele deparamos com o fascínio que há no encontro de raças e de culturas que fazem de nós o que somos.


"Fernando D'Aqui", de Isabel Ferreira, é um lançamento da editora Komedi de Campinas (SP). Editor: Sérgio Vale. Diagramação: Felipe dos Santos. Concepção da capa de Isabel Ferreira. Imagem da capa: vista parcial da Marginal de Luanda, Angola.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 08/11/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 08/11/2005