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Prefixos e preposições

 

Várias foram as questões de língua que deixaram em dúvida leitores deste jornal. A primeira delas nos foi encaminhada por Marcelo Viana, que deseja saber se a nossa língua possui uma palavra para designar o ‘amante do livro’, como cinéfilo para ‘pessoa que é louca por cinema’.  

Se ‘filo’ é elemento formador de palavras para designar ‘quem é amigo de’, ‘quem gosta de’ e, até, por exageração, para designar ‘quem é louco por algo’, a palavra para designar ‘aquele que gosta de livros’será, em rigor, bibliófilo' sabendo-se que o elemento ‘biblio-’significa ‘livro’. Ocorre que este sentido primário acabou por designar ‘aquele que gosta, ama e/ou coleciona livros raros, ou de edições especiais, ou cuja raridade consiste em ser enriquecidos com autógrafos ou com ex-libris, ou outras características’. De tal modo este significado secundário se agregou a bibliófilo que, para o valor desejado pelo leitor, se terá de recorrer à expressão ‘amante de livro’. Dicionários registram as duas acepções, mas parece que o uso opta pelo emprego da expressão, quando a intenção é referir-se ao significado pretendido pelo nosso Marcelo. 
 
Renato Pinna deseja saber se o adjetivo ‘relacionado’ é seguido de complemento introduzido pela preposição ‘com’ (Tal fato está relacionado com a vizinha), ou se lhe caberá outra  preposição. Ao lado de ‘com’, pode aparecer a preposição ‘a’ (Tal fato está relacionado à vizinha).

Outro caso de regência foi objeto da consulta da leitora Michelle:“Todos os sites que li dizem que o correto é ‘indeciso em’, mas li em uma gramática que diz ‘indeciso de'. Qual o certo? ”O adjetivo ‘indeciso’, como o substantivo ‘indecisão’, se acompanha de complemento introduzido pelas preposições ‘em’ e ‘sobre’, além das locuções ‘quanto a’, ‘em relação a’: “Estava indeciso em sair de casa”, “Sua indecisão em/sobre sair cedo fê-lo perder a condução”, “Estava indeciso em/sobre fechar rápido a  negociação". Poderíamos construir:“Estava indeciso quanto à solução imediata.” Se a indecisão se repete em mais de uma solução, usa-se ‘entre’:“Estava indeciso entre sair e ficar.” Por influência de ‘decidir’, ‘decisão’, etc., que se podem acompanhar da preposição ‘de’, será possível encontrar a regência 'indecisão de', 'indeciso de', ainda que raramente.  

Já Júlio Reis indaga-nos se o título de nosso artigo de 3 de abril “Até onde vai...” aceitaria a substituição de ‘onde’ por 'aonde':“Até aonde vai...”, já  que o  verbo 'ir' aceita a preposição 'a':“Vou à cidade.” Ocorre que no título já existe a preposição ‘até’, o que nos levou a empregar ‘onde' em vez de 'aonde'. O emprego de ‘até aonde’, com a presença de duas preposições(‘até’ e ‘a’ em ‘aonde’) não seria errôneo, porque ‘até’, como preposição, para indicar limite, começou a ter, não obrigatório, o reforço da preposição ‘a’, a partir do século XVII, para diferençá-la do advérbio ou palavra de inclusão ‘até’. 

Frases do tipo “O incêndio chegou até a cozinha” ou “A reprovação pegou até o José” poderiam ter duas interpretações: o ‘até’ seria preposição indicando limite, e aí o incêndio não teria passado da cozinha, e a reprovação só chegara a José, não englobando os alunos depois dele, por exemplo, na chamada. Ou o ‘até’ poderia ser entendido como  advérbio ou palavra de inclusão, valendo por 'inclusive': toda a casa pegou fogo, inclusive a cozinha, e todos os alunos foram reprovados, inclusive José, apesar de ser o mais estudioso, por exemplo. 
  
A língua distingue na construção essas duas unidades: se preposição, ‘até’ exige pronome pessoal oblíquo tônico (mim, ti, si, nós, vós), como toda preposição: “Ele chegou até mim, e ponderou suas razões”; se palavra de inclusão, acompanha-se do pronome pessoal reto:“Até eu fui castigado pela falta.”A partir do século XVII usaram os escritores o reforço da preposição a, opcionalmente nessa época, para distinguir as duas unidades:“O incêndio chegou até à cozinha” passou a significar que o fogo não ultrapassou essa área da casa”. O que era facultativo entre os séculos XVII e XVIII passou a ser obrigatório na sintaxe lusitana a partir do século XIX. Entre os brasileiros, o reforço continua optativo, salvo quando prevalece a intuição da distinção. Por isso, optamos no título pelo emprego de 'onde'.

O Dia (RJ), 1/5/2011