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Por uma história comum

 

O meu antepassado que vivia no Maranhão, na metade do século 18, não ignorava que podia servir a seu rei em Salvador, Marvão, Luanda, Macau ou Goa. Sabia-se parte de uma comunidade que ultrapassava o que tinha por horizonte. Já nós, nos dias de hoje, mostramo-nos distraídos para o fato de ter sido o Brasil parte de um império, o que fazia com que nossas fronteiras não ficassem em nosso continente nem parassem no nosso litoral: iam, ao norte, até os Açores e o rio Minho, e a leste, até Macau.


Temos consciência de que os sucessos na Metrópole nos regiam ou afetavam e de que os acontecimentos brasileiros lá repercutiam, mas tendemos a nos concentrar naqueles momentos de aceleração, mudança ou ruptura - como o descobrimento do ouro em Minas Gerais ou a invasão napoleônica - e a descuidar do fluir do dia-a-dia.


Deixamos de ter presentes as vinculações diretas entre os demais territórios do império, que podiam ser tão intensas que o sucedido num deles influía nos outros e até lhes determinava o comportamento. Assim, ao longo dos séculos 17 e 18, os interesses do Brasil comandavam de tal modo Luanda, que era no Brasil que a Metrópole recrutava muitos dos governadores de Angola. E era de Salvador que se controlava o ritmo do comércio com o pequenino, mas importantíssimo para o Brasil, forte de São João Batista de Ajudá.


Estamos ainda à espera de que se investigue como se interinfluenciavam e entreteciam as administrações da Metrópole, da Índia portuguesa, de Angola e do Brasil, e sobre a história individual daqueles que passaram os seus dias a mudar de terras e de oceanos. Pois os homens do Brasil foram trabalhar em Moçambique e na Índia, passando antes, muitas vezes, por Lisboa, Guiné, Cabo Verde, São Tomé ou Angola. Goeses e cabo-verdianos fizeram percursos semelhantes antes de chegar ao Brasil. Ameríndios serviram como soldados em Angola. E escravos embarcados nos mais diversos pontos da África não pararam de descer, durante 300 anos, em terras brasileiras.


O quotidiano de cada um desses tratos de terra que formavam um império, distantes uns dos outros pela demora das viagens, se foi alterando, ao longo dos séculos, ao influxo do movimento livre ou forçado de pessoas, um movimento que naturalmente se acompanhava pelo de animais, plantas, objetos, formas de vida familiar e modos de comportamento na cozinha, na varanda, na sala, no quarto e na rua. Durante todo esse tempo, encostaram-se, somaram-se e até se confundiram, nas terras banhadas pelo Índico e o Atlântico, distintos modos de vida, e mudaram-se jeitos de ser, e impregnaram-se de África e de Ásia as casas portuguesa e brasileira, e de Europa e de América as moradas africanas, a tal ponto que nos esquecemos, e não só aqui mas também do outro lado do mar, de que a canja era um prato indiano, a farinha de mandioca, uma comida tupi, e de que foi na China que aprendemos a empinar papagaios de papel.


Não seria demais imaginar-se como um primeiro projeto cultural coletivo dos países de língua oficial portuguesa a história das permutas que se fizeram ao longo do grande arco que vinculava Macau a Lisboa, da qual emergiria naturalmente a história social do que foi o império lusitano. Essa história exige a multiplicidade das perspectivas. Não basta que saibamos quão diferentes foram as declarações guerra, em 1665, de D. Antônio, rei do Congo, e de André Vidal de Negreiros , chefe dos portugueses; cumpre que aprendamos a ler cada uma delas com os olhos de ambos os contendores e também com os dos outros reis do que hoje é Angola.


Da Guiné vê-se Cabo Verde de um ângulo distinto do de Portugal. E do Brasil ainda mais, porque, até quase os primeiros quinze anos da segunda metade do século 20, quando os progressos da técnica, em especial o avião a jato, dispensaram a escala cabo-verdiana para reabastecimento nas viagens transatlânticas -, o arquipélago funcionou como traço-de-união entre o Brasil e a Europa. Ainda está por fazer-se o inventário das influências recíprocas entre o Brasil e Cabo Verde - influências que foram muitas e intensas, até no plano literário, com a presença do regionalismo nordestino nos escritores de Claridade - e ainda está também por escrever-se a crônica do recrutamento de marinheiros cabo-verdianos pela marinha mercante brasileira e de como depois ancoravam em famílias do Recife, bem como a dos marujos brasileiros que se deixavam ficar no arquipélago.


Também está a merecer que se relate com pormenores, e de diferentes pontos de observação, como era, em São Tomé, o duro aprendizado dos escravos das mais distintas origens que já chegavam às Américas ladinos, isto é, acostumados às abominações e às exigências dos brancos e a se expressarem em português.


A entrelaçar-se com a história de matrimônios de culturas corre, portanto, uma outra, conflituosa, destruidora, cruel. Como o dos outros povos, o nosso passado não está despido de crueldade, e precisamos conhecê-lo também pelos enfoques dos outros, para dolorosamente melhor aprender a com ele nos reconciliar. É difícil discordar de Carlos Drummond de Andrade, quando escreveu que ''toda história é remorso''. Sabemos que a nossa é feita de conflitos e violência - a começar pela violência que a marca de ponta a ponta: a escravidão racial, com suas seqüelas.


Mas, como a história de outros povos, ela também possui áreas luminosas. E tanto os seus encontros venturosos, as suas criações afortunadas, quanto as suas colisões e rompimentos não fazem parte, em geral, apenas da história do Brasil, mas também dos demais povos que hoje têm por idioma oficial o português. Ainda que cada qual deles se veja com um passado próprio, as aventuras e desventuras os vincularam entre si ao longo dos séculos, e devem, para serem plenamente entendidas, ser enfeixadas numa história comum ou, quando menos, num conjunto de histórias comunicantes.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 24/03/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em, 24/03/2004