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Poeta como poucos

 

Houve, de certo modo, em muita poesia feita depois de 1914, uma ruptura interna, uma como que desintegração que foi, em relação ao assunto, até o excesso do surrealismo, e caiu, quanto ao ritmo, na quebra muitas vezes forçada e artificial do verso, com o abuso de alguns recursos postiços da divisão poética.


A fuga pura e simples ao que morto pudesse haver em parte da poesia antiga construiu um degrau necessário para a renovação poética havida em toda a parte depois de entre outros, Baudelaire, Rimbaud e Walt Whitman, até, do nosso ponto-de-vista, culminar com a Semana de Arte Moderna de 1922.


As diversas revoluções, que se anunciavam pelo mundo, viviam, como não podia deixar de ser, inundadas de teorias. Daí, também, o exagerado esteticismo de nosso tempo, na confusa discussão sobre assuntos estéticos, em palavras e expressões - "Gestalt", "impulso volitivo", "meaning" - que assumiam aspectos de magias renovadoras. A moda, gasta em várias partes da Terra, chegou ao Brasil e provocou uma onda de teorias normativas, às quais deviam os poetas, em nome de uma vanguarda abstrata, amoldar-se.


Desde que Alexander Gottlieb Baumgarten criou, em 1735, o termo "estética", nunca se abusou tanto, como agora, dessa palavra. Contudo, o que Baugarten queria era apenas realçar a velha distinção dos filósofos gregos e dos padres da Igreja, entre aisthetá - "coisas percebidas" - e "nontá" - "coisas conhecidas" - para dizer que a poesia era um ato de percepção e não um ato de lógica.


Neste sentido maior do que poesia é "coisa percebida", não tivemos figura e obra mais emblemáticas, ao longo do século XX, do que as de Dante Milano. Foi ele um poeta plenamente inserido num estado de isolamento diante da realidade, o que o levava a tirar sangue de si mesmo no lidar com a poesia.


Não há por isto, melhor notícia, neste ano quinto de um novo milênio, do que a da publicação da "Obra reunida" da Dante Milano que, ao longo de mais de seiscentas páginas, junta os poemas do próprio Dante Milano, as traduções que fez do "Inferno" de Dante Alighieri, as de "38 poemas das Flores do Mal", de Baudelaire, as de poemas de Stéphane Mallarmé e mais ensaios e textos em prosa sobre literatura, bem como cartas que escreveu a Mário de Andrade e ao escultor Celso Antonio.


Acentue-se a importância dessa edição que restaura a obra praticamente completa de um de nossos grandes poetas de qualquer tempo. Sua poesia é de justa simplicidade. Usa o poeta, em suas palavras, as mesmas que fazem parte do nosso dia-a-dia, dotadas, porém, de uma firmeza lírica de significados que eleva o tom de seu cântico. Para ele, a "pedra" é mesmo "Pedra do chão, face parada/ Indiferente à carícia da mão,/ Figura inerte que não sente nada,/ Corpo que dorme e a que me abraço em vão."


Sua busca de essencialidade leva-o, inclusive, a criar poemas de um só verso em que a poesia definitivamente repousa. Como nestes: "Sou poeta. Não sei me traduzir..." - "As palavras não sabem o que eu penso." - "A lágrima não sabe por que chora" - "É preciso sorrir da morte, como os mortos," - "O vento desfolhou o pensamento" - "Deus um dia disse ao homem: "Vai, mas volta". - "Entre dois seios, forma-se uma cruz."


Como em quase todo bom poeta, o que Dante Milano faz é sair em busca do ser, esteja ele onde estiver, e então colocá-lo em versos - ou numa série de versos - submetidos um ritmo, à música das palavras. Herbert Read chama a atenção para o fato de que "a poesia é um modo mais primitivo de expressão do que a prosa."


Já Croce, comentando Vico, dissera: "O homem, antes de poder articular, canta; antes de falar em prosa, fala em verso; antes de usar termos técnicos, usa metáforas." É nesse contexto que Dante Milano se adianta com sua forma intensamente poética de ver o mundo e conhecer as paixões das gentes. Tem ele o dom raro da unidade, numa coesão de palavras, de sons, de ritmo, dentro de um sentido poético primitivamente natural e de densa originalidade. O que permite faça ele um poema de amor simples chamado "Separação": "Onde andarás sem mim nessas ruas enormes? - Quem te acompanha, quem contigo ri/ Sob as mesmas cobertas com quem dormes?/ Quem te ama, senão eu? Quem pensa em ti? / Vagas sem ter aonde ir e sem saber/ O que fazer, ou, sem prazer nenhum,/ Em mãos alheias como um bem comum, / A outro te entregas sem lhe pertencer.// Estou pensando em ti.... Pensar é estar sozinho..."


Digna da melhor atenção é também a parte dedicada à prosa do poeta. Ensaios sobre aspectos da literatura, sobre Antero de Quental, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Graça Aranha, Joaquim Nabuco. Do tempo, diz que o tempo nos lê. Tal como nos versos, na prosa também adota, de vez em quando, o pensamento curto, algumas idéias às vezes colocadas em poucas palavras.


Como nestas: "As idéias são intuitivas, rápidas: qualquer ingênuo as capta. Os pensamentos são lentos, reflexivos, doloridos. Só os viciados..." Ou nestas: "Tirando a mulher, o resto é paisagem." Em outra faixa de pensamento, de vez em quando dizia frases como esta: "É muito difícil ser crente. É muito fácil ser ateu."


Grande serviço prestado à nossa cultura é, sem dúvida, a edição da obra de Dante Milano, que falou em nosso nome, um tanto em segredo, no jeito que tinha de fugir à notoriedade e analisar o mundo com a força de suas palavras, analisando-nos também com uma lucidez que nos via a todos por dentro, nas horas da solidão e do amor, do descaso e da ironia.


"Obra reunida", de Dante Milano, é uma edição da Academia Brasileira de Letras. Organização, pesquisa e estabelecimento do texto de Sérgio Martagão Gesteira, apresentação de Ivan Junqueira, assistência editorial de Frederico Carvalho Gomes, projeto gráfico de Victor Burton.


 


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 12/04/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 12/04/2005