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Perigo de vida ou perigo de morte?

 

Mais complexa, porém não menos interessante, é a explicação para entendermos a infundada rejeição que modernamente se tem feito entre brasileiros à tradicional advertência‘ perigo de vida’, que se quer desbancada pela expressão ‘perigo de morte’, também correta, ouvida e lida vitoriosa na mídia. 

Para bem entendermos este interessante fato semântico, temos de recordar uma preciosa lição do teórico Eugenio Coseriu acerca da distinção que se deve fazer na terminologia científica da linguística entre os três tipos de conteúdo:o significado, a designação e o sentido. Entende-se por significado o conteúdo dos signos e  das construções de uma língua;  a designação é a referência à realidade ou à situação extralinguística como pensada e nomeada por esses signos e construções da língua, isto é, pelos significados dados pela língua; e o sentido é o conteúdo que corresponde à intenção ou ao objetivo comunicativo do discurso,  do nosso texto.

Tomemos um exemplo da  nossa atividade linguageira cotidiana: ‘Bom dia!’ O significado de ‘bom’ neste contexto não é o mesmo de ‘bom’ dado no dicionário em ‘bom rapaz’; usamos de ‘bom dia!’ ainda que esteja chovendo. ‘Bom dia!’ tem aqui uma unidade  de sentido do discurso ou texto que se usa como cumprimento matinal entre pessoas que se encontram pela primeira vez nessa manhã.  Entendida a distinção entre  significado e sentido, estaremos habilitados a perceber que têm significados de língua diferentes — e até opostos!—  vida e morte, mas que entram em expressões de discurso com o mesmo sentido, isto é, a mesma intenção comunicativa,  e vale dizer que ‘perigo de vida’ e ‘perigo de morte’ são discursos ou textos que aludem a uma mesma  situação de periculosidade  a que alguém está exposto, se não tomar as precauções devidas. Em outras palavras:  são discursos equivalentes  quanto ao sentido, mas  construídos com signos linguísticos não sinônimos (vida/ morte), isto é, sem o mesmo  significado. A opção por usar vida ou morte vai depender da norma ou uso normal em cada comunidade linguística.

Entre brasileiros aparece  documentado no primeiro  dicionário monolíngue da língua portuguesa, o de Morais (Antônio de Morais Silva), de 1789. O ‘Vocabulário Português e Latim’, de Bluteau, que serviu de fonte ao Morais, no volume editado em 1720, registra “pôr-se a perigo de vida, perder a vida”,  mas faz acompanhar das  equivalentes latinas vitae ou  mortis periculumadire ousubire, que atribui a Cícero. A norma em alemão prefere ‘vida’ (Lebensgefahr), enquanto portugueses—embora estes também conheçam ‘vida’ —, espanhóis, italianos e franceses  preferem ‘morte’: ‘perigo  de morte, peligro de muerte, pericolo di morte, danger  de mort’. Machado de Assis preferia ‘perigo’ ou ‘risco de vida’: “Se não fosse um homem que  passava, um senhor bem vestido, que acudiu depressa,  até com perigo de vida,  estaria morto e bem morto’,  “—Nada? Replicou alguém. Dê-me muitos desses nadas. Salvar uma criança com risco da própria vida...” (‘Quincas Borba’); “[...] impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida [...].”, “Tu não  tens sentimentos morais?  Não sabes o que é justiça? Não vês que me esbulhas descaradamente? E não percebes que eu saberei defender o que é meu, ainda com risco de vida?” (‘Páginas avulsas’).

Condenar ‘perigo de vida’ em favor de ‘perigo de morte’ é empobrecer os meios de  expressão do idioma — que  conta com os dois modos de  dizer —, além de desconhecer a história do seu léxico, em nome  de um descartável fundamento lógico.

Nota:Todos os exemplos citados nos três últimos artigos foram extraídos do Banco de Dados da Literatura Brasileira dos séculos XIX a XXI da ABL.

O Dia (RJ), 11/12/2011