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Pequena entrevista imaginária

 

- General McBlaster, muito obrigado por sair de seu descanso na reserva para dar uma opinião sobre a participação do Exército brasileiro na repressão do crime na cidade do Rio de Janeiro. Um homem com sua experiência certamente terá muito a dizer.


- Não, não creio que tenha muito a dizer. O que eu vou dizer qualquer militar sabe e não deve ser nenhuma novidade para meus colegas argentinos.


- Brasileiros.


- Sim, brasileiros, desculpe. Mas é tudo América do Sul, não é?


- Sim, de fato é. Mas...


- Meu jovem, esses detalhes não têm importância. Problema militar é problema militar em qualquer parte. Passei os olhos no material que me deram e não vejo obstáculos ao sucesso da operação, é elementar.


- O senhor sabe como agiria, se estivesse no comando da operação?


- Em termos genéricos, claro que sim, é elementar, como já disse.


- O senhor podia delinear os pontos básicos? Infelizmente, não temos muito tempo.


- Vamos começar pelo mais importante. Pelo que pude ver, a criminalidade se concentra nos morros de Bogotá.


- Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.


- Rio de Janeiro, Bogotá, morro é morro, acabam sendo todos a mesma coisa. Assim é que não vamos ter mesmo tempo para nada. Posso responder? Obrigado. Como eu disse, é simples. Temos apenas que mapear os morros e partir para a ação. Vamos supor, hipoteticamente, o morro X. Depois de tudo planejado secretamente, inicia-se o ataque de surpresa. A primeira coisa é preceder a incursão com um bombardeio aéreo maciço, para destruir as defesas do adversário. Lá na Bolívia, vocês têm Força Aérea, não têm?


- Brasil, Brasil, não Bolívia.


- Que diabo, que importância tem isso? O senhor quer, afinal, ouvir minha opinião técnica de militar ou não quer?


- Quero, quero, desculpe outra vez.


- Muito bem. Primeiro vamos ao bombardeio aéreo.


- Mas esses morros têm uma enorme população, cuja grande maioria não é criminosa, é vítima também.


- Sim, mas é o preço que tem de se pagar, não há como eliminar riscos, ainda que pequenos, com os bombardeios de precisão cirúrgica de hoje em dia. Eventuais baixas entre inocentes são inevitáveis, é fogo amigo. Vamos arrasar para liberar, como no Vietnã. Bem, encerrada a fase aérea, virá o apoio complementar de artilharia. O que não fosse atingido pelas bombas seria atingido pela artilharia. Isso é indispensável. Nenhum comandante responsável iria expor seus homens numa operação desastrada, sem cobertura prévia.


- Mas aí o morticínio entre os inocentes seria ainda maior.


- Olhe aqui, fatos são fatos. E o fato é que qualquer soldado sabe que quem ocupa mesmo é a infantaria. E, repito, nenhum comandante responsável iria expor seus homens a riscos desnecessários. Sem esse apoio preliminar, não há como pensar militarmente na ocupação. Se você ficar preocupado com firulas, nunca vai chegar a lugar nenhum. Posso falar, afinal?


- Pode, pode.


- Muito bem. Saturada a área pelo ataque aéreo e a artilharia, então mobilizaríamos a infantaria. Blindada, naturalmente.


- Blindada? O senhor quer dizer tanques e coisas assim?


- Eu estou falando inglês, que é uma língua universal, não estou falando grego. É isso mesmo que eu disse. Ou você quer uma guerra de trincheiras, como na Primeira Guerra Mundial? Infantaria e blindados, naturalmente. Aqui diz que o inimigo dispõe de minas terrestres. Você acha que eu enviaria meus rapazes a um massacre sem proteção blindada? Sei que, para vocês, sul-americanos, a vida tem menos valor do que para nós, americanos reais, mas, de qualquer forma, são as forças do Bem contra o Mal, vamos reduzir nossas baixas ao mínimo possível.


- Mas isso não envolveria atacar casas e edificações a canhão?


- Evidente, você queria o quê, confete? A ocupação pode ser um caso de terreno a conquistar polegada por polegada. E eles dispõem de armamento antitanque, também diz aqui. Pronto, está equacionado o problema, em linhas muito gerais. Faz-se isso em cada morro e logo a situação estará sob controle.


- Mas isso é como se o Exército estivesse enfrentando um inimigo estrangeiro, numa guerra?


- E não é guerra? Para que vocês chamaram o Exército, é para bailar?


- Mas não se trata disso. Como eu já disse, há uma grande população civil em jogo, seria um massacre. O objetivo é acabar com o crime.


- Bom, então vocês me enganaram. Isso aí é com a polícia. Lá no Peru não tem polícia?


- Brasil, Brasil.


- É a mesma coisa! Então botem a polícia no serviço. Serviço de Exército não é ficar investigando nada, nem prendendo vagabundo.


- Mas o povo do Rio acha que o Exército trará mais segurança.


- Fazendo bilu-bilu no queixinho do inimigo? Olhe aqui, meu amigo, a entrevista já está dada, não nos entendemos. Você disse que veio ouvir uma opinião militar, mas já vi que não quer nada disso. Nesse caso, vá entrevistar o inspetor Clouseau, que parece que chefia a polícia de vocês. Passar bem.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 16/05/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ), 16/05/2004