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Patrocínio: 100 anos

 

O centenário da morte de José do Patrocínio, que ocorre este ano, está sendo comemorado pela Academia Brasileira de Letras, de que ele foi membro fundador, tendo nela ocupado a cadeira nº 21 (seus sucessores foram Mário de Alencar, Olegário Mariano, Álvaro Moreyra, Adonias Filho, Dias Gomes e Roberto Campos, nela se encontrando atualmente Paulo Coelho).


Acima de tudo tribuno de gênio, como tal passou Patrocínio pela inteligência brasileira, pela nossa política e pela nossa literatura. De certa maneira, o tribuno preponderou na vida e na cultura do País, primeiro num período essencialmente sermonístico, de que o Padre Antônio Vieira foi o expoente, e vindo até Frei Francisco de Monte Alverne, sermonista oficial da corte de D. João VI no Rio de Janeiro.


Com a Independência, nossa oratória política superou a religiosa. Passamos a ter grandes oradores no Parlamento, desde um Evaristo da Veiga (1799-1837), discreto e objetivo, até o eloqüente e teatral Silveira Martins (1835-1901). As duas causas que apaixonaram os oradores da época foram a Abolição e a República.


Filho de um padre e uma quitandeira negra, ex-escrava, Justina Maria do Espírito Santo, Patrocínio pareceu predestinado a ser o herói da abolição. A quitanda de Dona Justina ficava num sobrado tosco no Centro de Campos. De lá saía para vender verduras e rolos de cana que levava num tabuleiro, com a mercadoria protegida por um bandó de pano velho. O pai, vigário da paróquia de Campos, que se fizera padre por insistência da família, estudara no Rio de Janeiro e em Portugal. Chamava-se João Carlos Monteiro e tinha fama de bom pregador.


Com ele, em sua casa de Campos e em fazenda perto da cidade, viveram Patrocínio e sua mãe, e ali o menino aprendeu suas primeiras letras e ganhou mesmo algum conhecimento de Latim. Entre os 14 e os 15 anos, resolveu tentar a sorte no Rio de Janeiro, o pai garantiu-lhe 16 mil réis por mês e Patrocínio, no Rio, trabalhou na Santa Casa de Misericórdia e começou a estudar Medicina. Quando perdeu a mesada, passou para um curso de Farmácia, mais barato. Sua meta era, porém, outra: escrever em jornal. Não demorou muito em lá chegar.


Em Portugal Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão conquistavam fama com "As farpas". Patrocínio lançou na imprensa brasileira os "Ferrões", que feriam mais fundo, e ficou famoso pela paixão de seu estilo. Passou a fazer a crônica parlamentar. Estava no seu elemento. Escrevia sobre os discursos dos parlamentares, sentia-se preso aos longos períodos dos que falavam.


De então para a frente criou um estilo de oratória, ingressou nos grupos abolicionistas, lançou a divisa: "A escrevidão é um roubo", publicou dois romances, "Mota Coqueiro ou a Pena de morte", contra a mesma, e "Os retirantes", livro que antecede em 50 anos a ficção nordestina dos anos 20 do século seguinte. Então já era o tribuno, o que falava e levantava multidões, o que falava com a voz cheia de emoção.


Dona Justina Maria do Espírito veio para o Rio de Janeiro onde se submeteria a uma operação urgente na Casa de Misericórdia. Faleceria cinco meses depois. O que houve então foi que ao enterro da quitandeira Justina Maria compareceram o chefe do Governo, Senador Sousa Dantas, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco. Quintino Bocaiúva, Campos Sales, Prudente de Moraes, entre muitas outras figuras do Rio de Janeiro.


O dia da assinatura, pela princesa Isabel, do ato da abolição, foi também o dia da consagração de Patrocínio, que entrou comovido no Paço Imperial, ajoelhou-se diante da princesa Isabel, foi carregado na rua e levado a um banquete. No final da madrugada, a sós com um amigo, João Marques, este lhe disse:


"Que belo dia para morreres, Zé. Devias morrer hoje. Nunca mais encontrarás dia melhor. Morrerás em plena apoteose. Tua família ficará a salvo de todas as necessidades. Teus filhos serão adotados pela Nação. Teu enterro será maior do que os triunfos romanos. Tuas estátuas ornarão as praças públicas. Mas vais viver e vais entrar na política... e aquilo emporcalha, meu amigo."


A profecia do amigo levaria quatro anos para acontecer. Patrocínio foi preso pela República e desterrado para Cucuí, no interior do Amazonas, perdeu o jornal, ficou mais pobre. Mas, esquecido, sonhou em fabricar um dirigível e voar (eram os tempos de Santos Dumont) e importou o primeiro automóvel que chegou ao Brasil, que, nas mãos de Olavo Bilac, seria destruído no primeiro desastre de automóvel aqui ocorrido.


Morando no subúrbio, de lá mandava seus artigos. Morreu quando escrevia um deles. O texto inicial desse artigo era este: "Fala-se na organização definitiva de uma Sociedade Protetora dos Animais. Eu tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que rudimentar e que eles sentem conscientemente revoltas contra a injustiça humana."


Chegando a "injustiça humana", teve uma hemoptise e morreu. Para nós, hoje, era jovem. Tinha 51 anos. Foi dos grandes brasileiros de qualquer tempo. Sua atividade ao longo de seus dias - atividade incessante, barulhenta, novidadeira, criativa, enfim redentora - causa admiração. Ajudou-nos a ter hoje um país melhor do que o de antigamente, inspirando-nos a levar à frente esse esforço de sermos ainda melhores, numa Nação mais livre, mais aberta, mais dona de si mesma, dona de seu passado, dona de seu presente e dona de seu futuro.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 21/06/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 21/06/2005