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Papai Noel,

 

SOU DOS POUCOS que acreditaram em você. Acho que não só os meninos devem escrever-lhe. Os velhos têm brinquedos a pedir, sonhos envoltos em chaminés e cegonhas. Mas esta é uma carta de lembrança. E, como todas as cartas de amor, devem rasgar-se.


Não vou perguntar-lhe o que você acha do mundo de hoje, desde quando em São Bento, debaixo de minha rede, você deixou aquele tambor de lata, feito pelo funileiro Roque, que me encheu de felicidade, porque ele era mágico e belo.


Mas não posso lhe perdoar quando lhe pedi uma bicicleta e, de manhã, procurei-a pela casa inteira. Minha mãe me convencia de que o senhor disse que não podia comprá-la. Chorei porque você podia tudo. Distribuía sonhos. Passei dias sonhando montá-la em equilíbrio de rodas num conforto de selim e cordas, na ânsia de possuí-la na doação do vento, alarmes e campainhas. A bicicleta que não tive invadiu de ambições meu pequeno ser na busca de alegrias e artifícios.


Minhas lágrimas eram minhas, mas nunca pude esquecer que você fez minha mãe chorar e me dizer que devia esquecer o sonho impossível naquela casa onde se rezava a ladainha pedindo o perdão dos pecados e sem posses. Ela não veio.


Os tempos fizeram-me sumir da infância. Crescia no mágico aprender as declinações de latim. Os pecados capitais, as virtudes teologais. Os pêlos iam aparecendo na dentição do corpo, e me afastava da bicicleta como ela outrora fugira de mim. Nada de rodar pelas ruas sem pedras, porque os anseios que adulto me despertavam eram desejos que não rodam como as bicicletas. Papai Noel, agora eu não precisava mais de você. Terna e encostada, apartada de mim, a bicicleta se entregava e eu a recusava.


Estou a escrever-lhe porque esse fantasma renasce na busca de montá-la. Ela passa rodando sem parar e sem que eu possa segurá-la.


Porque as pernas com que eu a desejei hoje são velhas para esse desejo. O brinquedo que sonhei e que você me negou, a vida me deu caminhos de tê-lo, pleno de enfeites, fitas e brilhos. Mas jamais poderei montá-la. É um sonho de rodas de borrachas, involuntária e sólida tarraxa. Papai Noel, de viver, vive-se. A vida inteira guardei essa mágoa de você e agora lhe escrevo, lembrando o rosto triste de minha mãe, as lágrimas que lhe escorriam no rosto, pálida e sem coragem de culpar-lhe pelo meu sonho de quem não sabia que você só dá brinquedo quando os pais podem comprá-los. Compreendi seu sofrimento, sofrendo sem remissão. Esta é uma carta de perdão. Ela viaja no tempo e enche de amor e fidelidade pelo sonho de todas as crianças sonharem com você. E eu sonhei. De viver, vive-se.


Do seu, Sarney


Folha de S. Paulo (SP) 21/12/2007

Folha de S. Paulo (SP), 21/12/2007