Juvenal, o poeta romano que pela primeira vez escreveu a frase, repetida há quase dois mil anos e aqui lembrada de forma muito livre, segundo a qual o povo quer mesmo é pão e circo, ou seja, comida e diversão, não era um aristocrata desdenhoso. O fato de sua vida ser misteriosa até hoje vê-se como indício de que foi perseguido pelos poderosos — e no tempo do imperador Domiciano, que, sob muitos aspectos, não era flor que se cheirasse.
Escondeu-se tanto que se sabe sobre ele muito menos do que possível, em circunstâncias, digamos, normais.
Diz-se que ele não só simpatizava com os pobres como partilhou com eles a impecúnia durante a maior parte da existência.
É necessário lembrar isso porque quem vê a citação sem maiores informações, pode achar que somente mostrava o desprezo de um aristocrata pela chamada gentalha. Mas era o contrário. Era uma constatação melancólica.
Enquanto houvesse bastante diversão e não se passasse fome, as instituições podiam ir para o beleléu à vontade e os césares podiam fazer o que bem entendessem, notadamente acabar de desmoralizar o Senado, que tanto então quanto hoje ajudava bastante.
Para o resto, ninguém dava pelota e isso o entristecia.
O nome de um homem e o que ele disse não atravessam milênios à toa.
Mesmo as grandes besteiras são lembradas devido a seu porte e, freqüentemente, ao emproado que as pronunciou de boca cheia. Por uma boa razão, Juvenal e seu pão e circo também volta e meia aparecem. Durante toda a história da humanidade, muita gente deve ter feito observações semelhantes, mesmo sem ter ouvido falar nele.
Ou, ao saber da frase, pensado um pouco e achado que, embora um tantinho generalizadora (mas dentro da margem de erro, como está na moda dizer-se), continha muita verdade.
Modestissimamente, acho que sou um desses casos. E que os nossos governantes, em todos os poderes em que fingem dividir-se por conveniência e para aparentar obedecer a alguma lei que não lhes interesse (coisa que jamais acontece definitivamente a um brasileiro poderoso, ou seja obedecer a uma lei que o atrapalhe), compreenderam e põem em prática com brilhantismo essa filosofia de governo. Com a informática e seus celulares, as redes internacionais de televisão e seus eventos espetaculares, os shows de praia, o carnaval e outros expedientes, a diversão está mais que garantida.
Do ponto de vista do governante, dando-se o pão com bolsas família, cestas básicas e outras das dezenas de esmolas ora vigentes, o pão do espírito, ou seja, o deleite estético, a fruição das artes e da cultura e da plena condição humana, é concomitantemente fornecido. Claro que o nível do povo precisa ser satisfeito com o que ele está preparado para apreciar, dado o baixo nível de nossa educação.
Então o que ele tem já dá de sobra e nos tornamos um povo de sensibilidade apurada, com acesso ao que de pior se faz de lixo internacionalmente e dizem, por exemplo, que o nosso Big Brother não fica devendo nada ao Big Brother de outro país nenhum.
Ninguém pensa além do nível necessário, e isso assegura a estabilidade do esquema “pão e circo”. Não fora a possibilidade de um ofendidíssimo fantasma de Juvenal vir me assombrar logo mais à meia-noite, eu sugeriria aos colegas que militam no campo do comentário político que examinem a adoção da expressão “república juvenalina”. Ela sumariza com grande eficácia e expressividade o que vivemos aqui. Para bom entendimento, é suficiente e imagino que entrevistas nas quais estrangeiros querem que a gente descreva o Brasil em poucas palavras, já dispomos dessa “taquigrafia”. Como é o Brasil? Bem, é complicado explicar, mas, acho que, se lhe disser que é uma república juvenalina, você entenderá logo.
Claro que existe o lado B, sempre existe um lado B. O lado B é que, diferentemente do Leviatã de Hobbes, que também mandava em tudo, mas tinha a obrigação de prover segurança ao cidadão, os governantes juvenalinos não a dão, até porque a insegurança preenche carências masoquistas e paranóicas existentes em qualquer sociedade, como testemunharão aqueles que nunca viveram melhores emoções vicárias do que acompanhar um seqüestro ou assassinato, ou mesmo se distraíram passando trotes para as vítimas, como sempre ocorre. Segurança não; diversão, sim, é a exigência basilar do juvenalismo.
Os governantes se esforçam. Agora mesmo está em cartaz “A saga do pré-sal” ou a farsa “Meti o dedo, acho que tem ovo, já vendi duas dúzias”, onde somente a parte do dedo (e não no da galinha) deverá ser encenada, mas já é divertida o suficiente. E não sei se vocês ouviram as piadas do presidente, uma atrás da outra, um desses dias aí em que ele estava na ribalta do Pré-Sal. Sim, ele brincou dizendo que achava que o mar era salgado por causa do xixi dos banhistas, não é engraçadíssimo e bem sacado? Ele é sempre impagável.
Já nas comunidades independentes, em que nem o presidente entra sem permissão do governo local, a coisa pode evoluir diferentemente.
Saiu nos jornais que traficantes e outros bandidos deram para usar jacarés contra inimigos ou vítimas. Estaremos a um passo de espetáculos como os do Coliseu romano, com membros de facções rivais sendo jogados vivos às feras, armados apenas com um estilete? Tenho certeza de que o comparecimento e a diversão seriam intensos, não só a dos presentes como a nossa, nos horrorizando deliciosamente diante da tevê. E, de qualquer forma, o Ibama (esse, sim, entra lá) proibiria os jacarés e outras feras nativas, e íamos ter de recorrer a leões, nada de estressar a nossa fauna. Vocês dirão: aquilo acontecia entre pagãos, agora somos cristãos civilizados. Os bandidos que hoje matam aos poucos, esfolam, queimam ou enterram vivos também são cristãos civilizados. Já vi gente achando graça na história dos jacarés.
Juvenal estava certo em qualquer lugar.
O Globo (RJ) 07/09/2008