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Ouvir estrelas

 

Ora, direis, ouvir estrelas... Desejo, contudo, lembrar-vos que as estrelas de Bilac têm uma presença da maior solidez na literatura brasileira e no imaginário nacional. E agora passam também a existir num romance-verdade (para usar uma expressão de Truman Capote) que é o livro de Ruy Castro, "Bilac vê estrelas". Reerguendo toda uma época de nossa literatura, e escolhendo Olavo Bilac e José do Patrocínio como personagens principais de seu enredo, desenvolve o autor uma narrativa de espionagem com tons surrealistas.


A base de tudo é a história de José do Patrocínio às voltas com o dirigível que estava construindo e que, sob o nome de "Santa Cruz", iria mostrar ao mundo que o Brasil, depois de Santos Dumont, permanecia à frente da tecnologia das aeronaves.


A notícia do invento chama a atenção de grupos europeus, que planejam roubar os desenhos e outros documentos do dirigível. Antes, Bilac vai a Paris e participa de jantar em casa da exilada Princesa Isabel e seu Príncipe d'Eu e ali fala do dirigível de Patrocínio.


Antes ainda, fora Patrocínio que viajara a Paris, vira a maravilha de então, o automóvel, e resolvera comprar um e trazê-lo para o Brasil. Era o primeiro a aqui chegar. Tratava-se de um Peugeot preto. Rui Castro descreve: "Desembaraçado o carro no cais do porto, Patrocínio girou a manivela, entrou nele, de quepe e guarda-pó, sob aplausos e apupos da multidão. À custa de vários desmaios e mortes do motor, atravessou a rua Primeiro de Março a dez quilômetros por hora e conseguiu levar a furreca até o Engenho de Dentro".


Não demorou muito e Bilac viu o automóvel e quis dirigir o dito cujo, com Patrocínio de passageiro. O poeta afundou o pé no acelerador e, cem metros adiante, achatou o carro contra uma árvore. Nenhum dos dois se machucou, mas era uma vez um Peugeot. Bilac pareceu contente com a idéia de que no futuro se lembrariam todos de que o primeiro acidente de automóvel do Brasil fora obra de um poeta.


Atribuo a "Bilac vê estrelas" um tom surrealista por causa do estilo de Ruy Castro que, dotado da extrema leveza, enfrenta a realidade com uma extraordinária liberdade de fabulação. Joga um acontecimento contra outro, equilibra a linha essencial de sua história "que é baseada em gente de verdade" numa linguagem de faz-de-conta que funciona.


Por outro lado, perpassa por todo o livro uma espécie de carioquice, tanto na linguagem como no encaminhar a narrativa, isto é, no seu ritmo, que fez lembrar Manuel Antonio de Almeida, na sua alegria, que foi também uma das características de "Memórias de um Sargento de Milícias".


Porque "Bilac vê estrelas" é um romance alegre, apesar (ou por causa) dos personagens como o padre e a mulher que desejam roubar o segredo completo do dirigível, ou os capoeiras e outros inimigos dos dois "mocinhos" da história. "Mocinho" e "bandido" são tipos normais e importantes em toda narrativa.


Existe, em "Bilac vê estrelas", o que define o bom romancista: a concepção, o ter um padrão pelo qual a narração aparece, o produzir um sentimento de "pathos", o mostrar a diversidade normal das gentes e as "perigosas seguranças" da condição humana. Ruy Castro organiza o seu romance, dispõe sua matéria ficcional e ao mesmo tempo histórica, monta-a cinematograficamente.


A importância da Confeitaria Colombo, como ponto de reunião de escritores, aparece com propriedade no livro. Foi o mais antigo local de encontros literários da cidade, precursor do Amarelinho, do Vermelhinho, do Lamas e dos que surgiram depois na Zona Sul do Rio de Janeiro. A Colombo tinha, porém, todo o encanto da Belle Époque e dos anos em que a poesia passou a ser, no Brasil, um assunto de apreço. Em "Bilac vê estrelas" a Colombo é também personagem, e vê-se nela a mesma importância que a Rive Gauche teve em Paris, com seus bares de encontro, do mesmo fascínio que o Greenwich Village vem tendo há muitos decênios em Nova York.


O livro traça ainda um panorama do Rio de Janeiro, com frases que iluminam trechos da cidade. Assim, durante muitos anos, a rua do Ouvidor fora proibida a cavaleiros e rodas de veículos e o romancista se espanta de que os personagens de sua história lá tenham entrada, e diz : "... a charrete dobrara à direita e galopava pelo sagrado macadame da rua do Ouvidor."


De resto, lembramo-nos de que o ano de 2005 será o do centenário da morte de José do Patrocínio. A Academia Brasileira de Letras, de que ele foi membro-fundador, promoverá ciclos de conferência sobre sua vida e sua obra, o mesmo fará a cidade de Campos, onde nasceu, bem como o Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro. Espera-se que livros seus sejam reeditados, principalmente o romance "Mata Coqueiro".


"Bilac vê estrelas", de Ruy Castro, é um lançamento da Companhia das Letras. Texto da quarta de capa de Carlos Heitor Cony. Revisão de Beatriz de Freitas Moreira e Cláudia Cantarin. Ilustração da capa de Paulo Humberto Ludovico de Almeida.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 26/10/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 26/10/2004