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Os Tambores de Josué

 

Naquela manhã, o Rio estava envolvido numa tênue neblina, que escondia o edifício de “A Noite”, na Praça Mauá. Perto dali, um jovem maranhense, de 19 anos, chegava à cidade e desembarcava no Cais do Porto. Como na toada famosa do sanfoneiro Luiz Gonzaga, ele vinha num Ita do Norte, dando adeus a Belém do Pará, graças a uma passagem que a soprano Bidu Sayão conseguira para ele junto ao prefeito paraense Antônio Lemos. O moço de São Luís, com seus amigos Nélio Reis e Dante Costa, descia as escadas do navio com 100 mil réis no bolso, trazendo na mala uma fatiota branca, seus livros, muitos projetos e sonhos.


Assim chegava ao Rio Josué Montello. Ele era apenas mais um personagem no extenso fabulário daquela nossa comum geração de jovens nordestinos nômades, que emigravam de suas terras secas para batalhar por um lugar ao sol na selva das grandes cidades.


Hospedou-se numa pensão em Botafogo, que se anunciava muito silenciosa. Mas ao abrir a janela, entendeu aquela promessa de silêncio: é que se estendia, abaixo, o cemitério de São João Batista, justamente onde foi enterrado na semana passada.


Em seguida, Josué freqüentou a Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, onde se envolveu com Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Peregrino Júnior, Múcio Leão, Cyro dos Anjos, Aurélio Buarque, Manuel Bandeira, Luís Viana, Otávio Tarquínio e Lúcia Miguel Pereira. E já era, então, um leitor de Gide, Balzac, Stendhal, Proust e Victor Hugo, tão calado e tão recluso quanto o “Dom Casmurro”, do nosso Machado.


Certo dia, através de Guimarães Rosa, recebeu um convite do chanceler João Neves da Fontoura para ser professor de estudos brasileiros na universidade peruana de São Marcos. E já lá estava quando foi convidado por Viriato Corrêa para candidatar-se à Academia Brasileira de Letras.


Havia 12 candidatos, mas Josué elegeu-se, a 4 de novembro de 1954, logo no primeiro escrutínio, com 19 votos, para a cadeira de número 29, como um dos mais jovens membros (37 anos), permanecendo como acadêmico mais de meio século. Empossou-se a 4 julho de 1955, e foi saudado por Viriato Corrêa: “Aqui estais chegando, meu prezado conterrâneo, pelos vossos próprios méritos e sem nada dever a ninguém. Nosso comum Maranhão hoje está muito feliz com a vitória deste seu filho, muito amado e muito querido.”


Josué foi técnico de educação e professor do Dasp, diretor da Biblioteca Nacional e do Serviço Nacional do Teatro, subchefe da Casa Civil do presidente Juscelino Kubitschek, seu amigo e confidente, colaborador de O GLOBO, “Jornal do Brasil”, “Manchete”, professor de literatura brasileira nas universidades de Lisboa e de Madri, fundador e presidente do Conselho Federal de Cultura, conselheiro cultural da embaixada do Brasil na França, embaixador do Brasil na Unesco, fundador e diretor do Museu da República e, finalmente, presidente da ABL, no biênio 94/95, sucedendo a Austregésilo de Athayde e realizando uma administração inesquecível.


Livro clássico do autor é reeditado pela Nova Fronteira


Nesse mesmo tempo, Josué realizava uma das mais brilhantes e completas carreiras literárias no Brasil. Começou com o romance “Janelas fechadas”, em 1941, e prosseguiu com “A luz da estrela morta”, “Labirinto de espelhos”, “A décima noite”, “Os degraus do paraíso”; “Cais da sagração”, “Os tambores de São Luiz” - clássico recém-reeditado pela Nova Fronteira -, “Noite sobre Alcântara” e “Largo do desterro” (estes quatro do Ciclo Maranhense); “A coroa de areia”, “Pedra viva”, “Um beiral para os bem-te-vis” e “O camarote vazio”, até “O baile da despedida”, “A viagem sem regresso”, “A mulher proibida” e “Sempre serás lembrada”.


Escreveu ainda ensaios sobre “Hamlet”, o português António Nobre, Cervantes, Stendhal, os brasileiros Artur Azevedo, Machado de Assis, Tobias Barreto, Pedro I; os Anedotários da Academia, os “Diários” da Manhã, da Tarde, do Entardecer, da Noite e da Noite Iluminada, com traduções para o inglês, o francês, o italiano, o castelhano e o sueco, e versões para o cinema, num total de 131 títulos publicados (dos quais 27 romances), afora discursos, conferências, entrevistas, aulas, palestras, prefácios e artigos para jornais e revistas, que o transformaram num trabalhador braçal da inteligência e no maior operário-produtor da nossa literatura, como professor, biógrafo, administrador, jornalista, orador, romancista, historiador, cronista, teatrólogo, ensaísta e memorialista, com abrangência sobre todo o espectro e o universo literários, numa produção erudita e enciclopédica, que rivalizava com a de seu conterrâneo Coelho Neto.


Redigia à mão mais rápido do que a nossa capacidade de lê-lo


Acordava às 3h e escrevia de madrugada, tudo manuscrito, que a sua mulher, Yvonne, datilografava. Dizia-se dele que redigia à mão mais rápido do que a nossa capacidade de lê-lo. Não era por acaso que Josué se definia como um escritor não seduzido por nenhum outro título ou recompensa. Seu nome, como chefe dos judeus, é uma homenagem ao sucessor de Moisés e denomina um livro da Bíblia que descreve a conquista de Canaã.


Certa vez, declarou-me ele numa entrevista à “Manchete”: “Já estou descendo a outra encosta da vida e nada mais aspiro do que a este meu canto, a esta folha de papel, a esta caneta, a estes livros e à luz desta mesma lâmpada, enquanto ouço perto os passos de Yvonne, a companheira perfeita, outra dádiva que Deus me deu”.


Nos últimos 19 meses, Josué Montello, num estóico amor à vida, lutou para sobreviver. Ele viveu 52 anos como membro da ABL e príncipe do nosso romance, numa atmosfera de respeito, admiração e carinho pelos seus exemplos de vida correta e de intelectual competente, através dos inestimáveis serviços que prestou à cultura e à inteligência brasileiras.


 


O Globo - Caderno Prosa e Verso (Rio de Janeiro) 25/03/2006