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Os números da violência

 

“Se perguntássemos a qualquer pessoa quais são as cidades mais violentas do país, a resposta seria inevitável: Rio de Janeiro e São Paulo. Pois não são: o Rio de Janeiro está em 107º lugar na lista. E São Paulo, em 182º”


Quando eu era aluno da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, havia um professor que gostava de contar a seguinte historinha:


Um médico está atendendo em seu consultório. Entra um paciente: está resfriado. Logo depois, entra um segundo paciente, com o mesmo problema. E um terceiro. O doutor telefona para um colega e alerta: “Está havendo uma epidemia de resfriado no mundo”.


Perguntava o professor: estava, mesmo, havendo uma epidemia de resfriado ou aquilo era o fruto do acaso, daquilo que os norte-americanos chamam de “anedoctal evidence”? Entre parênteses, este “anedoctal” não quer dizer anedótico, e sim casual, mas, na historinha, funciona mesmo como anedótico. E nos ensina importante lição: temos de pensar numericamente. “Tudo o que é verdadeiro pode ser expresso em números”, dizia Lord Kelvin, cientista inglês. Nem tudo, claro, mas muita coisa se enquadra nesta regra.


Um importante levantamento acaba de ser divulgado pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), estabelecendo um ranking das mortes por homicídio no país em 2004. E o resultado surpreende por muitos aspectos.


Se perguntássemos a qualquer pessoa quais são as cidades mais violentas do país, a resposta seria inevitável: Rio de Janeiro e São Paulo. Pois não são: o Rio de Janeiro está em 107º lugar na lista. E São Paulo está em 182º lugar. De maneira geral, as cidades onde ocorrem maior número de homicídios, proporcionalmente à população, são lugares pequenos no interior do país. Isso ficou evidente porque a pesquisa usou, não números absolutos, mas coeficientes por 100 mil habitantes. É claro que, em números absolutos, ocorrem mais homicídios nas cidades grandes. A cidade que lidera a lista é Colniza (MT). Lá, ocorreram, em 2004, 18 homicídios, número que no Rio ou em São Paulo seria considerado até pequeno. Mas Colniza tinha então 12,4 mil habitantes, menos do que qualquer bairro das metrópoles brasileiras. Portanto, e relativamente falando, é, sim, muito homicídio.


Isso conduz a uma reflexão. Sempre se considerou que o fenômeno da urbanização estava associado à violência. E citava-se, para apoiar essa afirmação, uma experiência que os textos de etologia (a ciência que estuda comportamentos de animais) gostam de citar. Peixes (destes decorativos) são colocados em aquários progressivamente menores, de modo a reduzir o seu espaço. Observa-se então que as agressões entre eles, traduzidas em mordeduras, vão aumentando. Conclusão: quanto mais juntas vivem as criaturas, maior será a agressividade entre elas.


Acontece que, em primeiro lugar, seres humanos não são peixes: podem tomar consciência de sua situação e mudá-la. A opção pela cidade não é uma coisa passiva: as pessoas buscam mais recursos, maiores possibilidades de convívio. Agora: o que acontece no Rio ou em São Paulo tem muito mais possibilidade de virar manchete do que crimes, mesmo bárbaros, perpretados nos chamados grotões.


O estudo da OEI é muito importante, sobretudo porque é divulgado em um momento em que a violência está na ordem do dia. Precisamos aprender a pensar esse sombrio fenômeno de forma mais racional. A pesquisa precisa ter continuidade, mesmo porque é preciso confirmar se esses números configuram uma tendência. De qualquer modo, é um bom início. As coisas finalmente estão mudando.


Correio Braziliense (DF) 2/3/2007