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Octavio de Faria, o fabuador de pesadelos

 

Octavio de Faria nasceu no Rio de Janeiro em 15 de outubro de 1908 e morreu na mesma cidade, em 17 de outubro de 1980. O ensaísta de Maquiavel e o Brasil (1931), que depois escreveu Dois poetas: Augusto Frederico Schmidt e Vinicius de Moraes (1935), é o mesmo romancista de A tragédia burguesa, espécie de Inferno, da Divina Comédia Brasileira pela amplitude e o incrível fôlego na criação de personagens, como um Balzac dos trópicos.


Entretanto, prende-se sua originalidade não só à radiografia social de uma época, mas à radiografia moral e espiritual da condição humana, à luta entre o bem e o mal e ao confronto entre ''principados e potestades''. Vinculado a León Bloy, sobre quem magnificamente escreveu, dele recebe o mote de toda sua estrutura romanesca, onde ''a tristeza maior é a de não ser santo''. Seu estilo serve ao tema e não o tema ao estilo. Daí porque, desavisadamente, certos leitores, não vendo nele invenções de linguagem, o achem superficial ou passadiço.


A narrativa é vívida, absorvente, arrebatadora, com uma força interior que rege as personagens, ou é regida por elas, entre corpo, rosto e voz. E nisso se aproxima também de Balzac, que contava suas histórias sem a preocupação da gramática ou das elucubrações formais. Utilizava, como poucos, a gramática da vida, os advérbios de sonhos e o verbo de um universo, a maior das vezes, trágico dos seres sob energias e das atrações que os transcendem.


Esta tragédia de Octavio de Faria, de toda uma sociedade em decadência de valores, mistura palavra e mito para engendrar suas personagens-símbolos e as metáforas coletivas. Octavio de Faria não é apenas um moralista (todo o grande escritor, de alguma maneira, o é), mas fabulador de pesadelos. Não se pode afirmar que não critica a sociedade - porque não se omite - porém, revela as forças que nos dilaceram, explicando, dostoievskyanamente, o crime e o castigo.


Embora envolto nos embates de um paraíso perdido, recupera a alegria ou se perde no conflito entre sombras. Porque a personagem principal deste livro de livros - um completa outro e vivem independentes - a personagem é a alma, na Divina Comédia da Alma.


Tristão de Athayde, em primoroso ensaio, quanto ao digladiar-se do bem e o mal, avizinha de Octavio de Faria o mundo roseano. Mesmo que nele vigore entranhado catolicismo, Octavio de Faria se incorpora a uma plêiade rara: Julian Green, Bernanos, León Bloy, capaz de fugir de esquemas religiosos, para contemplar o homem diante de sua sede e de seus contrastes.


A genialidade de Octavio de Faria trabalha um cerne que não se acomoda. Nisso se mune de coragem interminável.


Eduardo Portella, com sua lucidez, percebeu em O senhor do mundo a existência do romance metafísico e social, julgando ser o alto sentido da obra, esta aptidão de unir, harmoniosamente, o metafísico e o social. Outro aspecto vislumbrou e com razão: o fato de estar o romance desligado de qualquer marca localista. E entendemos que o drama contado não se situa geograficamente. O mundo já é sua própria geografia. Octavio de Faria com certa onipotência criadora vê de cima, como a águia, os meandros da erosão humana, o sexo, o amor, o sofrimento e a vilania. Não pretende dissimular nada. Nem a crueldade. E apesar de ser um oceano de textos, há uma vida própria neles, como sucedeu com Balzac e Proust. Não é proustiano, salvo pela profundeza das personagens com que recria o tempo vivido.


É o pensamento que o desenrola, sob imagens ricas e o estilo aparentemente canhestro, bruto e pronto para produzir efeitos no campo das idéias ou do sentimento: príncipe mendigo, mas príncipe, senhor dos abismos. No entanto, não se esquiva da poesia, nem se preocupa com as frases e sim com o que delas pode extrair de epifania, como consegue no final de Os caminhos da vida, porque se mantém incólume ao mistério. Na poesia, aliás, guarda afinidade (não em vão, foram amicíssimos) com Augusto Frederico Schmidt. Os versos se afiguram banais, contudo possuem alta intensidade poética, inesperadamente, talvez pela energia interior. Octavio ''procura chorando'', como Pascal e Bloy.


Curiosamente, os seres octavianos, como em Proust e Dickens, têm avidez de algo maior, os absolutos, desde as águas do inconsciente coletivo até os calcanhares limosos da memória. A obra unitária e humaníssima de Octavio de Faria no atavio comunicatório, na invenção das criaturas e na temática do abismo, clarifica-se também pelo nome das personagens. Veja-se Branco (pureza), Ângela (Anjo), Armando (armador do suicídio), Pedro (o que trai Jesus e se arrepende), O Mundo (lugar do abismo), O Lodo (a iniquidade), Caminho da Vida (o Redentor). Sem esquecer - porque aqui não opera o esquecimento - a gravitação de um inconsciente prodigioso a elaborar esta tragédia, que nem sempre é dos nobres e grandes fatos cotidianos, mas dos pequenos, um resvalar que pode ser morte ou a tênue morte que pode ser vida.


Até as personagens secundárias têm sua sina. Tem a afluência de Almas mortas, de Gogol, ou Anna Karenina, de León Tolstoi, com um paralelismo complexo entre as criaturas e as histórias com seus sistemas simbólicos. Balzac dizia que escrevia à luz de duas verdades eternas: a religião e a monarquia. Octavio de Faria escreve à luz da religião e da burguesia, no fluxo do vertiginoso conflito da escolha e da salvação.


Está na hora de redescobrirmos a obra portentosa de Octavio de Faria, este seu tempo de Gogol de almas vivas. Está na hora de republicá-lo com dignidade, o que não aconteceu com a derradeira edição que Pallas fez em convênio com o Instituto Nacional do Livro: horrenda, desrespeitosa e ilegível, saída em 2001, após Octavio de Faria sumir destas paisagens humanas. E deixou sua bengala ao abandono, bengala de almas e pássaros. É preciso retomá-la, republicando sua obra com cuidado e honra devidos, o que ainda não sucedeu e ressaltando a singularidade - o que poucos sabem - desse autor, sim, que continua vivo, ainda que fora de circulação. Porque Octavio de Faria não se dilacera com acidentes ou relevos formais. Crê como Cioran - e tem acerto nisso - que ''a profundidade não necessita de originalidade''.


 


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 20/04/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 20/04/2005