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Obama:da purga à virada

 

A confissão de um Obama candente, na sua catarse diante da derrota eleitoral, é fenômeno inédito do discurso político contemporâneo. Merece reflexão, à altura do que possa ser, e novamente de maneira inesperada, o reacionarismo republicano, em que parecem mergulhar os Estados Unidos. Vai manter o país, na sua grandeza, a consciência em que se ganham ou perdem viradas históricas, como a que sugeria ser a sua eleição em 2006?

O discurso veio do mais fundo da prática genuinamente democrática do país de Roosevelt, Kennedy ou Luther King, sufocado pela tragédia do bushismo e da civilização da vangloria, ao lado da do medo, que marcou a nação tangida pela catástrofe da queda das torres. Obama atingia o status quo de uma civilização da mais nédia opulência, num repúdio instintivo às inéditas reformas da criação, do serviço tradicional de saiide ou das mudanças tributárias, para a redistribuição de renda, ou uma definitiva visão "não hegemônica" da presença internacional do país.
 
Mais ainda, sofreria Obama a devastadora crise financeira de 2008, que levaria à acusação de defesa do superinvestimento bancário e à utilização maciça do Estado para reequilibrar a disponibilidade de poupança e consumo do país.

A impaciência com os resultados demorados do programa democrático, de par com os desajustes de uma depressão que pode pôr em causa a própria viabilização do modelo neoliberal, sofreria o primeiro mau humor da oposição, fazendo surgir, exatamente, com o mais impoluto purismo da reação, a defesa ostensiva da regressão econômica. Vai-se à defesa mais selvagem do capitalismo, e de sua prosperidade da ultima trintena, causadora, por sua vez, da derrocada de agora, pelo desmedido da ambição de lucro empresarial, nas opções de mercado futuro, e pela mais desimpedida concentração de renda americana.

No jogo das contradições históricas e dos seus valores, emergiam justamente a profundidade da investida original de Obama e o modo pelo qual o incômodo real do estabelecimento chegou ao desarrazoado das suas contrapropostas. O conservadorismo vai ao recuo limite, com o programa do "Tea Party" e, por ele, a polarização da América conservadora e dos rednecks, que não chegaram até hoje a formular de maneira tão contundente e grosseira o seu simplismo político. 

 
De toda forma, o roldão não chegou a entronizar os primeiros missionários da reação, suas carreatas e arrastões cívicos pelo país, nem foram eleitas personalidades-chave, como Sharon 0'Donnel ou Sheila Angle ou Margareth Donavan. Mas é movimento contumaz a imobilizar os republicanos moderados, negando-se a parlamentar com Obama e propondo-se a sabotagem maciça dos democratas e a imobilização de todo o programa da Casa Branca por esses dois anos restantes.

 
Historicamente, o que inquieta é o nível objetivo dessa radicalização, a ter a figura de Sandra Palin como seu ícone e a juntar gregos e troianos na facção vencedora, relutando - a partir do próprio líder da Câmara, John Boehrer - a garantir a validade do governo como saído das umas do dia 3 de novembro. Estamos diante da hipótese em que a Constituição americana admite um recall. Ou seja, de uma volta às urnas, por terem, afinal, os representantes do povo inviabilizado, de saída, os seus mandatos, nimia inconcebível neutralização da vida pública do país.
 
O inédito das palavras de Obama após a derrota cobra já, também, o inédito do seu repúdio. E o que houve de sofreguidão e desgosto no voto contrapõe à prova, agora, a gama toda desses "nãos". O tomar-se tento dessa radicalidade estéril entremostra como luxo da afluência os amuos de um eleitorado pouco politizado no seu grosso, em contraste com as consciências críticas, a dos negros ou dos latinos, ou de todas as minorias étnicas que se mantiveram fieis aos democratas.

Impõe-se agora a Obama, nos rompantes fundadores das presidências americanas, repetir, nesta segunda etapa, em que,literalmente, reinaugura o seu mandato, a chamada da primeira hora de um Kennedy. O direito moral, que já lhe outorgou a abertura de corações após o prélio, pode reptar essa consciência cívica do país, cobrável aos desfastios da hora, pirateados pela radicalidade elementar dos fundamentalismos antilibertários.

Jornal do Commercio (RJ), 19/11/2010