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O tênue sopro da inspiração

 

Talvez a pergunta mais universal que se tem vontade de fazer a um artista seja sobre o mecanismo de criação. Algo que fascina todos, desperta a curiosidade de cada um. Não é de admirar: todos intuímos que esse é um dos grandes mistérios da humanidade, maior do que cada indivíduo. Ao mesmo tempo extremamente pessoal e presente em todas as culturas, por mais diversas que sejam. Um fenômeno que transcende cada pessoa em seus limites. Inexplicável, porém reconhecido e digno de admiração.

Como apreciadora de arte, sempre me maravilho. Por exemplo, ao perceber quanto um pintor como Picasso estudou os grandes artistas que o precederam e copiou as obras clássicas até desenvolver um domínio absoluto de seu olho e seu traço, e poder ter segurança para destruir tudo aquilo que até esse momento se considerava arte. E começar de novo. Também me fascina ver quanto um mestre como Matisse aprendeu e absorveu das estamparias e tecidos com que trabalhavam seus familiares e vizinhos, operários na indústria têxtil daquela cidadezinha do norte da França em que vivia, inserida numa secular tradição de tecelagem - e depois, após um período de cópias de obras alheias em museus parisienses, usou esse conhecimento acumulado para mergulhar na depuração, soltar cores, linhas e superfícies na liberdade, escancarando as portas da modernidade e nos fazendo ver a beleza de uma forma totalmente nova.

É surpreendente confirmar, a cada passo, como a imersão na tradição trabalha para intensificar a força da ruptura e o jorro de novidade. Além disso, constatar sempre como o trabalho contínuo e obsessivo, metódico e disciplinado, aponta caminhos. Mas também quanto prazer ele dá ao criador, algo tão visível que às vezes parece aos outros que nem é trabalho, mas pura diversão.

Em música, podemos nos extasiar com uma série de outros processos mentais sofisticadíssimos, de uma racionalidade estonteante - como a evidente exploração matemática de possibilidades que a obra de Bach revela, por exemplo, enquanto dá a impressão superficial de estar apenas deslizando suave por caminhos de beleza pura, com a naturalidade de quem assobia ou um passarinho canta.

Os exemplos são infindáveis. Cada um de nós é capaz de se lembrar de vários outros. Sempre a nos intrigar, com a explosão que a criatividade é capaz de causar ao se manifestar, após períodos de aplicado estudo, recolhimento, silêncio.

Como escritora, também estou acostumada com essa curiosidade. A cada encontro público que tenho com leitores a pergunta acaba surgindo. Pode vir em sua forma teórica, na linguagem adulta, com variantes do tipo:

- Quais são suas fontes de inspiração? Como se processa a escrita de um livro?

Pode também surgir na questão direta que todo grupo de crianças propõe à discussão, logo de saída, sempre uma das perguntas inaugurais de qualquer debate com pequenos leitores:

- De onde você tirou a ideia para escrever essa história?

Como se estivesse tudo guardado num lugarzinho especial - interno ou externo, segundo a imaginação de cada um. Ou lá no alto, prontinho para descer do céu ou do Olimpo, inspiração vinda diretamente das musas. Ou talvez, quem sabe, no fundo de coração e mente do artista, um ser abençoado pelos deuses e pronto para recorrer a seu depósito quando bem entender. O súbito sopro da inspiração.

Mas quem cria sabe que não é assim que as coisas se passam.

Criação é um mecanismo esquisito. O artista criador vai aos poucos desenvolvendo mecanismos para reconhecer a chegada do processo e até para perceber como ele se desenrola. Mas é difícil explicar.

Há uma historinha que já contei algumas vezes, mas repito porque me parece de uma clareza luminosa. Na verdade, foi inicialmente contada por outro escritor, o saudoso Fernando Sabino.

Se não me engano, quem contou a ele foi sua filha, a cantora Verônica Sabino. Não lembro bem o personagem original. Faz tanto tempo que esqueci. Mas sei que era outro escritor. Mais exatamente, um letrista - alguém bem no meio do caminho entre a literatura de Fernando e a música de Verônica. Tenho quase certeza de que foi o Vítor Martins, letrista e parceiro do compositor Ivan Lins.

Pois que seja ele, então. Pelo menos como personagem, para efeitos narrativos. O que importa é que o caso me chegou assim, numa linha de criadores que foram passando adiante. E ajuda muito a explicar a criação. Literária ou musical.

Um dia o poeta e letrista acordou meio pensativo. O parceiro lhe mandara uma melodia uns dias antes. No primeiro momento não lhe ocorrera nada como letra, estava cismado com isso já havia algum tempo. Mas agora estava parecendo que vinham umas palavras, na boa métrica, com um ritmo bom, talvez alguma coisa pudesse sair dali. Resolveu ouvir a fita de novo. Deitou no sofá, fechou os olhos, ficou escutando com atenção.

A empregada chegou para arrumar a sala, viu a cena e não resistiu a fazer um comentário:

- Vida boa, hein, seu Vítor... De papo pro ar, descansando até essa hora...

- Nada disso, estou trabalhando.

Pela cara dela, dava para ver a descrença. Mas não havia como explicar. O artista fechou os olhos de novo e continuou, tentando captar as palavras e frases que se ofereciam e fugiam.

Daí a algumas semanas, estava às voltas com a situação inversa. Precisava aprontar uma letra, mas estava completamente sem ideia. Desistiu de forçar e tratou de se distrair com outra coisa. Começou a andar pela casa, resolveu arrumar umas pastas e gavetas, se ocupar manualmente, consertar coisinhas que havia um tempão esperavam por uma folga disponível. A empregada passou, olhou, não estava acostumada com aquilo, e comentou admirada:

- Aí, hein, seu Vítor... Tô gostando de ver. Hoje o senhor amanheceu com disposição para trabalhar...

- Que nada, eu estou é vadiando.

O olhar desconfiado dela mostrava que não estava de acordo. É claro que a resposta não a convencia. Mas, que jeito? É assim que as coisas acontecem.

Talvez a dificuldade de compreender esse processo seja uma das raízes da falta de respeito com a remuneração de autores e artistas em geral. Essa gente que, aparentemente, "leva a vida na flauta". Como se não produzissem nada para o bem comum e fossem uns inúteis cujo trabalho não merece ser reconhecido. Daí equívocos como os que, cheios de boas intenções, numa sociedade que cobra por tudo o que se necessita adquirir, pretendem que o fruto do esforço e do processo de criação seja distribuído de graça. Como se depois o artista pudesse se eximir de pagar o supermercado, o seguro-saúde ou o colégio do filho com a explicação: "Não tenho grana, deixei que baixassem tudo de graça na internet". E a explicação fosse aceita como pagamento, ao final de um processo em que os provedores e hospedeiros ganham rios de dinheiro com publicidade, pagam as contas de energia elétrica, equipamento e manutenção do escritório, mas acham impossível remunerar um único fornecedor: os produtores de conteúdo.

Enquanto isso, os criadores trabalham. Sem isso, não há inspiração que salve. Pensemos nisso, se queremos continuar garantindo a sobrevivência da criação artística.

E voltemos a Picasso, nem que seja só para constatar que ainda não deram melhor explicação do que a dele:

- Inspiração? Se existir, espero que ao chegar me encontre trabalhando.

Valor Econômico, 8/3/2013