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O tempo de um romancista

 

As histórias que se escoam deste livro de Autran Dourado, "O senhor das horas", se estão subordinadas a um tempo, também se fixam num espaço. O autor levanta seu mundo em placas de Tempo que se ligam entre si, mas dão às vezes a impressão de que se mantêm independentes umas das outras, com uma cidade mineira, cujo nome é Duas Pontes, mostrando os dramas e as comédias que ocorrem no dia-a-dia de sua gente.


"O senhor das horas" pega o Tempo como chão e o espaço como palco para com eles - principalmente com o Tempo - mostrar os jeitos dos que vivem nas lonjuras de seu Estado. Claro que todo escritor usa o Tempo e o espaço, já que nem ele nem seus personagens podem se livrar dessas duas contingências. Mas o importante, no caso de um criador (e o escritor o é), vem a ser a consciência, que ele tem, profunda e percuciente, de que o tempo, ou o Tempo, está aí, e nos prende e nos amarra - ou nos liberta e nos esclarece, como em Proust.


Seja-me permitido elaborar um pouco mais sobre o Tempo. Começando com o Tempo em Santo Agostinho. A frase da Bíblia "No princípio Deus criou o Céu e a Terra" fez Santo Agostinho pensar. Vale a pena que se lembre da diferença que havia entre Santo Tomás de Aquino e Santo Agostinho, dois dos principais filósofos da Igreja Católica. Essa diferença estava em que o primeiro privilegiava o Ser, enquanto o segundo privilegiava o Tempo (quando, séculos mais tarde, Heidegger escreveu "O ser e o tempo", estava ligado à síntese de um problema bem antigo).


O que preocupava Santo Agostinho era saber se aquele "princípio" da Bíblia vinha depois de alguma coisa. Se tal fosse, depois de quê? O que tinha havido antes? Já existira antes um "Tempo"? Um Tempo normal, com passado, presente e futuro? Ou o "Tempo" só começou a existir no ato da criação? Ou foi o "Tempo" também criado com o Homem e a Terra para que Homem e Terra pudessem nele existir? Deus, na eternidade, não precisaria de "Tempo". Ou tinha precisado e já tivesse existido, junto a Ele, um "acontecer"?


Firme no seu espaço, é no Tempo que Autran Dourado se mostra um mestre no romance brasileiro. Seu livro de agora coloca a história do País refletida na cidade mineira, de onde saem voluntários que vão lutar em São Paulo em favor de uma reconstitucionalização, entre os quais um cidadão de Duas Pontes chamado Oriosvaldino Cunegundes, que se transforma em herói e mito da cidade (nomes estranhos apareceram em várias partes do Brasil, inclusive de um menino mencionado como nascido na Zona da Mata mineira, que teria sido registrado como Um-Dois-Três de Oliveira Quatro).


No retrato que o autor faz de uma terra e de um espaço, revela minúcias de uma comunidade situada bem no interior do País, fechada em si mesma e contudo com pensamentos e sentimentos saltados para fora. Os nomes de Artur Bernardes, Getúlio Vargas e a Aliança Liberal, o Partido Republicado Mineiro (PRM), os italianos e seus descendentes que, depois da Colônia Cecília, no Paraná, chegam a Duas Pontes, tudo aparece no livro, no retrato de um Tempo brasileiro que parece estar muito longe, mas que a leitura mantém próximo de nós.


Autran Dourado, ficcionista da primeira linha brasileira em qualquer tempo, pega sua terra mineira com a força calma de suas palavras e nela situa uma história, dividida em seis contos ou em seis tempos, que, na realidade, são uma só e única novela de câmara, um romance executado com trechos de vários instrumentos (rítmicos e vocabulares) que se unem e se exprimem numa peça literária completa em si mesma.


"O senhor das horas" é livro de se ler. Junto com o primor formal de sua feitura, leva-nos a avaliar o Tempo que nos é dado e nos é tomado sem mais nem menos.


"O senhor das horas" é um lançamento da Editora Rocco. Ilustração de capa de Ciro Fernandes.


Tribuna da Imprensa (RJ) 2/1/2007