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O sorteio dos caixões

 

Era do modelo que estava sendo chamado de "caixão Barbie": pequeno, cor-de-rosa, com lacinhos no forro


O cenário de dezenas de caixões empilhados, urnas de cremação coloridas e carros de funerária só parece mórbido para quem não é do ramo. Para os visitantes da Funexpo, feira voltada para agentes funerários no Guarujá (SP), é tudo muito natural.


"O que eu mais gosto é de ver os caixões", diz Bruna Romanini, 14, de família dona de funerária em Jacareí (SP). "Ela adora mesmo", confirma a tia Andrea, 29. "Especialmente este da Barbie", retoma Bruna, apontando para um caixão cor-de-rosa, com lacinhos no forro. Caixão da Barbie? "É, está todo mundo chamando de "caixão da Barbie". Criei como opção para as mocinhas. Ou para homens também, vai saber", diz a fabricante Regina Agostinho, de Valença (RJ). O modelo sai no atacado por R$ 1.080.


Há outro lilás, com paetês e renda purpurinada, que "está na mesma faixa de preço". Outros itens em exposição são caixões de diversos tamanhos, como "alto", "gordo" e "supergordo". O logotipo da feira é um caixão sorridente equilibrando-se sobre uma prancha de surfe. Para atrair clientela, um estande sorteou três caixões infantis.


Outros itens em exposição: coroas de flores de plástico; maquiagem funerária em seis tons de pele, da mais alva à mais escura. Cotidiano, 4 de setembro


ELA NÃO SABIA que estava participando do sorteio dos caixões, uma das várias atrações da Exposição Funerária. Só quando começaram insistentemente a chamar pelo alto-falante a pessoa que tivesse o ingresso de número 1.463 é que ela se deu conta: o ingresso, que felizmente tinha conservado consigo, era numerado, e concorria a vários sorteios, um dos quais -o sorteio de um caixão de defunto- acabara de ser realizado. E ela, coisa que nunca lhe acontecia, fora a contemplada.


Sua primeira reação foi de susto. Um caixão! Um caixão de defunto! O que faria com aquilo? Vou fingir que não é comigo, disse à irmã, que não concordou: caixões de defunto não são baratos, e não é todo dia que a pessoa recebe um caixão de graça. E, considerando que todos têm de morrer, certamente esse caixão acabaria sendo usado.


Ainda contrariada, dirigiu-se ao lugar onde estavam os organizadores e identificou-se como a ganhadora do sorteio. Recebeu efusivos cumprimentos, e em seguida mostraram-lhe o caixão a que ela fizera jus. Era do modelo que ali na exposição estava sendo chamado de "caixão Barbie": pequeno, cor-de-rosa, com lacinhos no forro.


Chocada, não sabia o que dizer. O que é que eu vou fazer com isso, perguntou ao encarregado do sorteio. O homem coçou a cabeça: realmente, para uso próprio, não daria. Mulher gordinha, corpulenta, ainda que não muito alta, ela sem dúvida necessitaria do modelo "gordo", ou mesmo "supergordo". A menos que fizesse dieta, ou que contraísse uma dessas doenças que deixam a pessoa pele e osso. Mas mesmo isso não resolveria o problema; havia ainda a altura.


Mesmo baixinha ela não caberia no caixão. "A senhora não precisa ser enterrada com as pernas", observou um homem que assistia à cena. "Afinal de contas, depois da morte, ninguém caminha."


Ela estava a ponto de chorar. Isso não é um presente, pensava, isso é uma maldição. Da qual só havia um meio de ela se livrar: dando o caixão de presente para a Barbie. Só que, como se sabe, bonecas não morrem.


É uma das vantagens que levam sobre os seres humanos.


Folha de S. Paulo (SP) 10/9/2007