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O senhor do futuro

 

Com a morte de Agenor Miranda Rocha, no último fim de semana, aos 96 anos de sua idade, perdeu o Brasil o seu "oluwô" (profeta) e perdeu a cultura afro-brasileira a sua grande figura. Nascido em Angola, filho de diplomata português e mãe angolana, aos seis anos veio para o Brasil, tornando-se entre nós o conhecedor e intérprete por excelência de um pensamento religioso africano que se expandiu por muitas regiões do País.


Fui seu amigo, dele ouvi histórias, límpidas e belas, dos orixás que recebemos da África, e aprendi máximas que, sendo também religiosas, ultrapassam os limites das seitas e atingem o plano da sabedoria. Assim, percorri a cidade e a região de Ketu por intermédio de Agenor, antes de lá estar. Capital do antigo reino, quando a conheci era Kêtu uma cidade relativamente pequena. Mas de estranho fascínio.


Nela se concentrava toda a tradição religiosa que me fazia entendê-la como a Delfos negra, centro do mundo, o umbigo da terra que os gregos chamavam de omphalos. Assim que a vi, senti-me fisgado, harpado, preso, marcado para o resto da vida. Corria já no meu sangue, depois de vivência em Lagos, Ibadan, Oxogbô, Warri, o vício da África de que ninguém se livra mais. Chegar a Kêtu foi o entendimento definitivo. Por onde caminhei depois, comigo veio ela, com sua quentura, suas cores, sua gente, seus cheiros, seus gostos, seu ritmo.


Guardei na memória e no pensamento não só o terreno físico da cidade, ou o mercado apenas, ou a quartinha com água para Exu, ou o vulto de Oxossi olhando-nos por entre as folhas da mata. Permaneceu também no meu corpo, desde então, toda Kêtu, com a força de sua presença em terras d'África e sua diáspora no chão das Américas. De lá saí com um inteiro sistema de palavras e formas novas que venho tentando colocar em livros. Ali nasceu de mim aquela que chamei de Abionan e que, personagem de ficção, hoje me acompanha na busca das visões necessárias.


Depois de "A casa da água", escrevi o romance "O rei de Ketu" como que em transe, surpreendendo as mulheres da região central do então Daomé, em seu pleno estar-aí. Comigo se achavam as raízes de Kêtu plantadas no Brasil. Comigo caminhavam Mãe Senhora, a ialorixá do Axé Opô Afonjá, de Salvador, e o professor Agenor - Agenor Miranda Rocha - o oluwô por excelência de nossa gente, o dono do oráculo, o severo servidor do futuro, o senhor da nova Delfos, o amigo de Ifá, deus da adivinhação.


O livro de Agenor Miranda Rocha, "As nações de Kêtu (origens, ritos e crenças)", narra a história das casas de Kêtu no Brasil, sua composição, sua importância, sua história, sua expansão.


Diga-se que há uma sabedoria que só a religião consegue captar e guardar. É a que se baseia na busca do autoconhecimento e na união, tão profunda quanto possível, entre cada ser humano e o universo circundante, habitado por múltiplas formas da natureza e por outros seres humanos, seus semelhantes. O grude que junta ser com ser ganha, na religião, uma força inesperada, capaz de ligar, de religar, de tornar inconsúteis os tecidos de que as pessoas são feitas.


No começo era o verbo, mas também o espaço. Neste, tudo se movimenta ou se aquieta, se agita ou se abranda. Espaço tem de ser construído, trecho a trecho, pois nele tudo acontece. Depois da construção, há que haver à sagração. A sagração do espaço. Se a maioria das religiões repousa na palavra e na prédica, a dos iorubás - de Kêtu - se expande na dança.


Dançar é rezar. Dançavam os egípcios e os gregos para os seus deuses, e David dançou diante da Arca. O ritmo dos tambores penteia a dança, os cânticos determinam gestos e marcam a duração dos passos. A pureza da oração feito dança ganha significados através da possessão. As visões são parte desse universo religioso, e na possessão está embutida a visão. Tal como na visão do poeta, que pode consubstanciar-se em versos para todo o sempre, a do místico e do homem e da mulher ligados à religião pode antever caminhos e comportamentos.


Os índios da planície norte-americana determinavam que os jovens da tribo - mais ou menos na idade do mitzvab - se escondessem em desertos ou lugares solitários onde, depois de dois ou três dias de jejum, "buscassem a visão". Nesse retiro espiritual deveriam traçar o plano de suas vidas e achar, no fundo de si mesmos, um anjo da guarda que os acompanharia até o fim.


O livro de Agenor surge como documento básico na religião afro-brasileira. Sacerdote ligado ao culto de Irá - da adivinhação, do oráculo - é o oluwô que, mais do que qualquer outro no Brasil, definiu e resolveu as questões decisivas da seita. Dele foi o jogo de búzios que escolheu as atuais ialorixás do Axé Opô Afonjá (Stella de Oxossi) e do Engenho Velho (Tatá de Oxum).


No livro de Agenor Miranda Rocha é o Brasil que se destaca, um Brasil que absorve culturas e religiões e mantém uma profunda união com a sacralidade da existência humana, com as coisas essenciais que ligam e religam o homem ao universo. Toda uma cosmogonia está nele explicada. Uma filosofia de comportamento. Uma ética da natureza. É o livro que abre um movimento necessário tendente a promover um novo descobrimento do Brasil.


"As nações de Kêtu", de Agenor Miranda Rocha, é uma apresentação da editora Mauad. Prefácio de Muniz Sodré, "Orelha" de Zora Seljan, capa de Jacques Kalbourian.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 20/07/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ), 20/07/2004