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O Senhor de todos

 

Foi feito pela mão do homem, ao contrário da Lagoa, que foi feita pela mão de Deus. É Senhor do Rio. Não chega a ser um objeto de culto, não pertence a nenhuma religião específica, embora tenha o visual e o nome do fundador de uma delas.

Na verdade, é um bloco de cimento rude revestido de pequenas escamas, como as naves espaciais. É um gigante de muitos metros de altura, com os braços abertos: apesar do gesto, não lembra uma cruz, mas um abraço.

De tal maneira integrou-se ao pedestal -um penhasco negro e formidável- que o conjunto é, de longe, o maior monumento jamais criado pelo homem, mesmo o homem que não tenha Deus.

O carioca se habituou a ele e ele se habituou ao carioca. Em todos os sentidos, é um carioca, incorporou-se à sua persona e ao seu anedotário. Judeus, ateus, comunistas, umbandistas -todos concordam que ele é a cara do Rio.

É o primeiro a enfrentar nossos temporais, o primeiro a ouvir os tamborins dos nossos morros nas vésperas do Carnaval, o primeiro a se espantar com nossas enchentes e misérias, o primeiro a amanhecer em seu posto de trabalho, pontual e breve. Se for do nosso destino ser um dia destruídos por uma catástrofe, natural ou provocada, ele será a primeira vítima, o primeiro a morrer, com os seus imensos braços abraçando todos nós.

Não é só da cidade, é de todos que aqui chegam, venham de onde vieram. Mas é da Lagoa que se tem a visão fantástica de seu assombroso pedestal de granito. É na Lagoa que ele se reflete durante o dia e, fosforescente, sereia iluminada, fica boiando nas águas escurecidas pela noite.

Todos o sabem ali, inarredável, sempre o mesmo, altar doméstico, âncora às avessas, jogada contra o céu (trecho de "A Lagoa", Relume Dumará, 2ª edição, 2000).

Folha de São Paulo, 13/10/2011