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O segundo dia do novo ano

 

2 de janeiro de 2006 (data que figura na Folha e em vários outros jornais no dia de hoje). 


 


Até o Juízo Final, os dias continuarão se sucedendo, o amanhecer seguindo-se à noite. Portanto, se hoje não for dia 2 de janeiro de 2006, desconsidere a epígrafe aí em cima e prepare-se para colocar nos braços da Grande Balança os seus pecados e suas virtudes. Mas, se como quase todos esperam, o calendário seguiu seu curso, chegamos ao segundo dia do ano.


Que é, como se sabe, muito diferente do primeiro dia do ano, tão diferente como é a segunda-feira do domingo. Esta coincidência, aliás, torna 2006 particularmente interessante. E, como dizem os chineses, Deus nos livre dos anos interessantes. Os chineses devem saber das coisas; afinal, não é por nada que crescem 9% ao ano.


O primeiro dia do ano é um clímax. Aquela festança, as taças de champanhe se elevando no ar, a alegria esfuziante, os beijos apaixonados. O segundo dia é um anticlímax: dia de voltar ao trabalho, dia de enfrentar a realidade: salários baixos, juros altos, ameaça de desemprego, CPIs. O primeiro dia do ano é ficção, e ficção hollywoodiana: tudo dá certo, o amor é belo, o final é feliz. O segundo dia é a realidade: as manchetes de jornais anunciando os acidentes, as violências. O primeiro dia do ano nos dá presentes; o segundo, cobra a conta.


O segundo dia do ano lembra uma clássica historinha. Trata-se de um rapaz solteiro que voltou de uma festa completamente bêbado. Quando acorda, deitado numa cama que não é a sua, num apartamento que não é o seu, leva um tremendo susto: deitada a seu lado está uma moça, profundamente adormecida. Uma moça bonita, até - só que ele não sabe de quem se trata. Durante alguns minutos ele hesita: será que deve se mandar, sair disfarçadamente? Mas isso não seria delicado, nem justo. Além disso, ele é dos que acreditam nos desígnios do Destino. De modo que desperta a jovem e pergunta-lhe o que aconteceu. Surpresa, ela diz que se conheceram numa festa, na noite anterior, que se apaixonaram instantaneamente e que vão casar justamente neste dia que começa. E aí está a questão: será que foi este o melhor desfecho para a festa? Ou teria sido melhor para ele acordar na sua estreita cama de solitário?


Dúvida semelhante apossa-se de muitos de nós no dia 2 de janeiro. Ainda bem que existe um dia 3, não é mesmo? Ainda bem.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 2/1/2006