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O segredo irredutível da poesia

 

Na poesia de Manuel Bandeira, como na de qualquer poeta cuja obra comporte momentos de transição entre um e outro estágio instrumental, o recurso da dissolução rítmica encontra-se intimamente relacionado à técnica do verso livre, ou seja, à ''libertinagem'' (Advirta-se que esse conceito de dissolução rítmica não corresponde, como o pretende Adolfo Casais Monteiro em seu longo estudo sobre Manuel Bandeira, à supressão do ritmo, o que, em outras palavras, equivaleria, conforme didaticamente observa Emanuel de Moraes, à aceitação de ''sua tese da poesia sem ritmo nenhum, mais do que dissoluta, portanto''. O que se deve entender aqui por ''dissolução rítmica'' refere-se apenas à modulação do ritmo mediante uma ruptura dos esquemas métricos tradicionais). Ao analisar esses processos de fratura em O ritmo dissoluto, o próprio Bandeira o define como ''um livro de transição entre dois momentos'' de sua poesia, acrescentando ainda haver sido através dele que alcançou a ''completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei libertinagem, torna-se assim muito claro em que sentido se deve interpretar essa ''libertinagem'', ou seja, enquanto lúcida e lírica licenciosidade poética. Em suma: ''libertinagem de temas, de matéria. Total liberdade. A liberdade que é a primeira condição para a libertinagem''.


 E assim também o entenderam, já na época, ensaístas tão argutos quanto Sérgio Buarque de Holanda. Onestaldo de Pennafort e Pedro Dantas, que assinam, ao lado de Abgar Renault (autor de um magistral estudo sobre os milagres operados por Bandeira em suas traduções de poetas) e de Rodrigo Melo Franco de Andrade, os textos de avaliação crítica mais percucientes até então escritos sobre a poesia de Bandeira. Ainda com relação a essa ''libertinagem'', a esse lirismo que se quis apenas enquanto ''libertação,'' surpreende a funda incompreensão com que a analisou Tristão de Ataíde, segundo quem ela seria como que um ''sonho mau'' ou um ''manto efêmero de algodão'' que o poeta teria atirado aos ombros ''para chocar a galeria''. O propósito de ''chocar a galeria'' era exclusivo do Modernismo, e não de Bandeira, cuja poesia, além de prescindir da nova ordem estética, perdura para aquém e além dos limites cronológicos do movimento. E mesmo que se pudesse argüir o fascínio de uma libertinagem espiritual por parte do autor, admita-se que esta foi sempre de natureza antes estética do que mundana e social.


Mas o que teria de fato levado Bandeira a adotar o verso livre? E como pôde ele, cuja formação poética transcorre em estrita observância aos cânones da tradição clássica, realizá-lo com tanta mestria, executando assim o salto que o impeliu da evanescente melodia simbolista à áspera harmonia do Modernismo? No estupendo ensaio que escreveu sobre a poética do autor, Onestado de Pennafort pinça o nervo da questão: ''Como todo mestre, ele sentiu um dia a necessidade de se evadir da ordem estabelecida para uma ordem especial de desmanchar tudo para começar de novo. Toda evasão supõe o cansaço daquilo a que se deseja fugir. Sua obra resumia, condensado, estratificado, todo o acervo dos princípios estéticos que permitiram e inspiraram em todas as línguas e em tantos séculos de literatura a criação de tantas obras-primas; numa palavra, sua obra era um racourci de toda a arte poética que desde os latinos regeu a pena dos poetas.'' Assim, Bandeira só pôde desencadear sua revolução poética - que é, também, a rebelião humanística de um homem de cultura - a partir da tradição, ou seja, só pôde descobrir o novo através do antigo.


Na verdade, ao alcançar essa encruzilhada, Bandeira não mais dispunha de quaisquer opções. Apesar de haver sido uma ''conquista difícil'', como ele próprio confessa no Itinerário de Pasárgada, o verso livre se lhe impunha então não tanto como alternativa, e sim como fatal desiderato. Bandeira já esgotara todas as possibilidades rítmicas da polimetria e, saturado da usura e da algidez da linguagem convencional, começara a tangenciar, como observa Sérgio Buarque de Holanda, o ideal da ''forma significant'' ou do ''ritmo semântico''. E acrescenta o ensaísta: ''A medida que assim se apuram, no entanto, as possibilidades técnicas de Bandeira, uma recusa em atender aos padrões bem aceitos evolui para uma impaciência quase agressiva ante certos processos gastos e fáceis.'' Seus poemas vão gradualmente perdendo aquele ''sentimento da medida'' e, em alguns casos, como seria o do Noturno da Rua da Lapa, já florescem naquela terra de ninguém que se estende como um desafio entre a poetry e a fiction. Restava-lhe, porém, o segredo irredutível da poesia, ou seja, a unidade rítmica do verso, único elemento capaz de tornar poética até mesmo a prosa mais banal, Bandeira se antecipara assim ao Modernismo. E seu verso era agora ''belo, áspero, intratável'', como aquele cacto que ''lembrava os gestos desesperados da estatuária''.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 02/02/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 02/02/2005