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O ruidoso modernismo da paulicéia desvairada

 

A Semana de Arte Moderna tem sido envolvida em permanente clima de paixão. De sua prosa e de seus versos, uns bons, outros sofríveis, ficaram poucas amostras. Na sua origem, ela teve, ao que parece, uma finalidade: a de sacudir piadas ferinas, poemas caóticos, discursos mal escritos e o torpor provinciano de uma pequena elite econômica da cidade de São Paulo, então com cerca de 500 mil habitantes.


Pode-se imaginar o que ela era no início da década de 20. Fazendeiros como os Prados cogitavam de política e de café, dois mananciais da fortuna. Proprietários urbanos, residentes na Avenida Paulista e adjacências, recebiam para chás, almoços e jantares os mesmos amigos. As damas participavam pouco da vida cultural. Dona Olívia Penteado abria o seu salão, numa réplica de Saint-Germain des Pres, do Faubourg Saint-Honoré, da Rue de Rivoli, do Boulevard Hausmann e outros lugares do parisianismo, sempre sedutor.


A prosa brasileira já havia tido Machado de Assis, inovador de gênio, que nunca esbanjou palavras. Lima Barreto, outro mulato de talento, abria janelas para o romance social. Aluísio de Azevedo, também mulato, lançava-se no realismo tão cru quanto o de Zola.


Foi nesse ambiente que chegamos ao Modernismo, inicialmente chamado Futurismo. Evidentemente, os paulistas não eram ainda versados em filosofia. Não haviam mergulhado nos abismos do pensamento de Platão, Aristóteles, Plotino, Sêneca, Santo Agostinho, Santo Tomás, Descartes, Kant e Hegel.


Espírito irrequieto, Oswald de Andrade, que era rico, ao menos para a época, foi a Paris, Roma e outras cidades: regressando da Europa, fez-se o primeiro importador do Futurismo. O Manifesto Futurista de Marinetti, pregando o combate ao academicismo, fora-lhe revelado em Paris. Era um manifesto delirante, que Chesterton chamaria de ''lunático''. Hoje, faz rir, mas na época foi tomado a sério, publicado a 20 de fevereiro de 1909 no jornal parisiense Le Figaro. E seduziu o jovem Oswald de Andrade, sendo o ponto de partida do Modernismo paulista, cujos líderes romperam com o passado e zurziram Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Vicente de Carvalho.


A Paulicéia Desvairada foi um marco de Mário de Andrade, além de Macunaíma. De 1922 até a sua morte, ele foi considerado o líder do Modernismo, condição que aceitou, embora de início tenha repelido o envolvimento de Oswald de Andrade. Mais lido, mais declamado e mais famoso do que ele foi Menotti Del Picchia, autor do Manifesto da Semana, que procurou as influências italianas e que, embora aderindo entusiasticamente ao Modernismo, não deixou de ser d'annunziano em poesia e lírico no Juca Mulato.


O Modernismo paulista foi eclético. Teve escultores, pintores, prosadores, poetas e músicos. Teve até mecenas, como D. Olívia Penteado. A Semana de Arte Moderna foi trazida de fora. Apollinaire teve cópias. Marinetti, Papini e outros futuristas da Itália e da França passaram pelo decalque em São Paulo.


Hoje, mais de 80 anos depois, a Semana de Arte Moderna ainda continua a suscitar controvérsias, polêmicas e debates. Há posições radicalizadas que nada consegue demover. O que importa é a ressonância, há tantas décadas, de uma alegre, ruidosa e bulhenta promoção de moços daquela que, então, se chamava Paulicéia.


Não julgo a Semana de Arte Moderna. Coloco-a no quadro da vasta, longa e ampla relação entre o Modernismo gerado pelo racionalismo filosófico, pelo individualismo religioso e pela quebra dos cânones morais, em suma, na grande crise do mundo moderno.


É um episódio da repercussão desse fenômeno, em São Paulo, que ainda não se deu conta de ser a caixa acústica, onde vieram repercutir essas ondas lançadas na Velha Europa, em passado longínquo.


Concluo sem tomar partido, lembrando que os paulistas desvendaram o roteiro do Modernismo no Brasil, constituindo-se na sua vanguarda. Não faço um julgamento de valor. Somente sua constatação.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 01/03/2006

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 01/03/2006