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O raro salão de Marcos Madeira

 

Perdemos Marcos Almir Madeira e sua esplêndida elegância, de personagem-ponte entre tempos da nossa República das Letras. Deu-nos sua extraordinária prestança na passagem, neste último meio século, de uma cultura de elite ao mundo múltiplo em que se elenca hoje um pensamento, sua obra, seu gesto, sua militância, ou o simples fluir, a que acode ainda o salão das nossas origens.


Deixou-nos Marcos, às vésperas de ser levado à Secretaria Geral da Academia Brasileira de Letras, pelo consenso de seus pares, no reconhecer de que forma nosso confrade assegurava o trânsito entre os lugares sociais em que se repartiu a Velha República, nesta beira-mar, sempre metrópole. Do Petit Trianon ao Instituto Histórico, no Passeio Público, ao Pen Club, da praia do Flamengo. Presidente deste, como Austregésilo, da ABL, orador oficial do IHGB, o trabalho fundamental, de Marcos nestas décadas, foi o de assegurar um viveiro natural àquela difícil aventura do espírito, onde se reconheceriam os criadores da pena: poetas, ensaístas, novelistas.


Graças à sua pertinácia, fez-se o cotidiano possível em que saíamos da literatura, sorriso da sociedade, da definição de Afrânio Peixoto. Mas não sem manter-lhe a cadência secreta para a mudança quase invisível, segura de seu cerimonial a que Marcos Madeira garantia o culto da efeméride, o corte das gerações e na nossa capital interior que remanesce, refazia o espetáculo dos corpos diplomáticos, fugidos, por um instante, do degredo brasílico, e permitindo a figuração das nossas galas teimosas, de Europa, França e Brasil. Jaeger ou Buckhardt, ou Gian Carlos Argan talharam em etapas distintas da modernidade estas visões internas dos espaços, inseparáveis da vida do espírito e que exigem os seus arquitetos. Ou quem lhes trace a amplitude, pelos gestos demarcatórios.


Personagem dos institutos e das academias, Marcos, sobretudo, manteve o salão possível, como o herdamos dos palacetes de dª. Laurinda Santos Lobo e da belle époque, para empunhar o passaporte da mundanidade lúcida com que congregava, lembrava, cobrava, como ninguém, esta appartenance interior, da festa e da conversa, a que continuamos docemente presos sob palavra. Este Pen Club morre com ele. Administrador alerta da novidade e consciente como ninguém do perene das etiquetas e das mesuras. Quem proverá agora o jantar de todas as embaixadas no Clube Suíço, da Glória? Ou cerimônias de posse, resultantes do seu tento único, para abrir vagas, trocando a morte pela sabedoria da promoção dos membros, de militantes a honorários, a desapertar hierarquias, acomodando as glórias vetustas à suave ladeira das gerações?


Investiu-se Marcos Madeira, nunca rompante, no papel de ajudar a esse parto do País, saído da cultura dos bacharéis e da retórica beletrista. Relembrando as raízes internacionais da mensagem do Pen, que repetiu Valery - e a cuja mensagem Cláudio de Souza entregou como legado, o seu apartamento no Flamengo - Marcos foi o batonnier da conversação da cabeça, tal como chegamos ao novo século e na metrópole que se queria nacional, no recrutamento de membros de todo o País.


Nesta convocatória, toda a figura do presidente repontava, no heráldico da voz, nada pompa nem empertigo, allure natural para envergar a Ordem do Saint Esprit, Comenda de Versailles, transformada na Ordem de Cavaleiro das Artes e das Letras, da França pós-Gaulista; por certo, no peito a Legião de Honra, ou o Grande Colar do Sol dos Incas.


Guardamos na memória este perpassar de festa perene de nosso confrade, a atmosfera leve das elegâncias de sua França de entre as duas guerras, dos filmes de René Clair, ou chansonniers à la Maurice Chevalier, que emprestavam o seu timbre aos salões do Flamengo, ou no apartamento da Pinheiro Machado, os livros de dedicatórias difíceis, e a vitrina das condecorações, no reconhecimento internacional de Marcos.


Coloquial por excelência, e sempre a relembrar os causeurs que o antecederam, no à vontade e no esmero da retórica, da repetição até, vivaz e malicioso, a interlocução prazerosa e desarmada. Seu, o prumo sempre do orador oficial do Instituto Histórico, no segredo das impostações como no domínio da ribalta, humor recôndito do discurso ou, sobretudo, da saineta para a conversa que nunca deixava cair. Dava-se ao portento como à meia luz ou à meia glória de todos os convivas. Personagem de um cenário de transição, protagonizava este nascente humanismo brasileiro, beletrista mas a passar, também, pelo começo das nossas ciências sociais. Esta em que seus colegas de mais de meio século viram o niteroiense, amarrado ao contraforte de Oliveira Vianna, assentar os primórdios da Escola Brasileira de Administração Pública.


A Ebap do fastígio de há meio século, trazia um alunado à novidade fundadora, à visão larga sobre a racionalização das burocracias nacionais, o tratamento interdisciplinar de seus saberes e o manejo de um conhecimento a que não se dissociava da perspectiva histórica da hora, e de um projeto brasileiro. Marcos deixava na meninada de então esta marca de uma ciência operadora e objetiva no pensar-se o País a emergir, investido do seu "que fazer".


Nessa sociabilidade da vida do espírito, de papéis tão indispensáveis quanto invisíveis, seria impossível reconhecer em Marcos Almir Madeira um octogenário, sempre a sangrar-se na energia para a repartida. Difícil imaginar maior alegria que a de ter sabido, na antevéspera da morte, da empreitada que lhe pedia a ABL como tarefa exigentíssima. Deixou-nos, não mais que de repente, na conversa da noite de autógrafos de Cecília Costa.


Passo de medida certa sempre, o seu, até o último momento. Ribalta sempre o que pisasse, noção exímia do diálogo que não esmaga e, sobretudo, da sempre prestança ao outro. Certeiro senhor do seu porte como todos o vimos ainda na posse de Ana Maria Machado, o donaire do colete branco, aberto sobre o fardão. Comandante e parceiro, ao mesmo tempo, do doce alerta de quem fez e habitou o nosso teatro do mundo, a graça exata, tal como se deu à partilha de seus amigos.




Jornal do Commercio (RJ) 31/10/2003

Jornal do Commercio (RJ), 31/10/2003