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O que faltou a Vargas Llosa

 

Vargas Llosa, ao receber o Nobel de Literatura deste ano, confronta-nos aos grandes riscos, no seu discurso egrégio sobre os desafios da contemporaneidade. E na sua própria abordagem inicial que vai, exatamente, a esse grande recito, trazido ao ethos, em que o literato defronta as tensões morais e políticas do nosso futuro. Chama, por isso mesmo, a companhia das grandes penas latino-americanas, e exatamente dentro de uma reflexão análoga a que convoca a lembrança de Fuentes, Garcia Marques ou Ernesto Sabato.

A persona do Nobel deste ano não é a de um convertido à literatura, nem de uma chegada tardia à obra magistral, mas da fidelidade de um encontro de nascença que dá curso ao próprio imaginário da narrativa ocidental. E tal, a partir da literatura infantil que lhe permitiu, desde "Alice no País das Maravilhas" ou "Robin Hood", chegar aos seus títulos da consagração internacional. Ou deste tom universal em que transpôs o épico regional de Canudos à "Guerra do Fim do Mundo".

Mas até onde, no grande recito contemporâneo e do recado ético que lhe quer emprestar, Llosa descura do real concreto à sua frente? Do que se descola, na narrativa, pelo aguilhão do sentido e do recado emergente em nossa circunstância? Não é por outra via que uma dialética se desliga dos estereótipos, da repetição do vivido, em função do linico do instante, e do que, afinal, transcende este narrar, de que Llosa se confessa o definitivo prisioneiro.

Num tempo da "guerra de religiões", do sufoco dos pluralismos culturais, e da "civilização do medo", impõe-se um balizamento de rumos. Mas, para o Nobel, ela pode ficar nos contrapontos elementares e, exatamente, à custa do que desaparece nestes cortes sumários, diante da aventura tantas vezes caprichosa da diferença, eliminada pela disjunção preliminar, de ditadura ou democracia, como pauta de todo referencial sobre o devenir latino-americano.
 
A luta pelo pluralismo marca, e exatamente em condições como a do Estado latino-americano, o que é o desponte, por exemplo, da força identitária de Morales na Bolívia. No quadro das aparências democráticas, mantinha-se a dominação, ainda, do velho status quo, e o risco da quase fratura do país.
 
Devemos ao atual presidente, em La Paz, esta definição de um Estado plurinacional, abrindo caminho, aymara ou quéchua, no mesmo recado para o Equador ou o Peru. Mas Morales é tratado, literalmente, de personagem grotesco por Llosa, no seu discurso máter, na opacidade dos reconhecimentos emergentes, entre nós e, inclusive, no país de sua infância.

Ao entrarmos numa globalização não hegemônica, até onde o "grande recito" que pretende o Nobel ainda se fixa numa nostalgia ocidental, num culto formal da democracia, fora do advento das diferenças? No seio mesmo dos jogos simplificados das maiorias, é que se amputa o "ser para si" em emergência, seus paradoxos, seus reclamos de autenticidade, no mais sufocante dos universos da dominação ocidental como o da América Latina, sua ablação da realidade prévia, na imitação súcuba das instituições européias, após a independência novecentista.

O compromisso crescente dos Nobeis, como o da Paz, e agora, de Literatura, como humanismo engajado, não poderá fugir dos escritores do Terceiro Mundo. A consagração do recito de Vargas Llosa é, sem retorno, a desses "olhos de ver" e da superação de toda torre de marfim, no que possa ser a obra de arte, na sua responsabilidade concreta com o nosso tempo.

Jornal do Commercio (RJ ), 31/12/2010