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O primeiro livro

 

Dezembro de 1997 - Estou reescrevendo "O Ventre", meu primeiro livro. Não esperei que a Companhia das Letras me mandasse o disquete, pedi que Flavinha digitasse o texto da sexta edição (Civilização Brasileira) e comecei a mexer fundo. No início, timidamente, depois fundamente. Sem alterar a história e o clima, estou fazendo, em termos de linguagem, um novo livro.

Afinal, 40 anos me separam do texto inicial de minha carreira. Nunca tive tempo para a revisão criteriosa, e no pouco que mexi, havia preguiça.

Várias vezes, no passado, pensava em colocar papel na minha velha Remington portátil e começar do zero. Agora, com o computador, com texto já digitalizado, podendo ser alterado, eliminado, acrescido, ficava difícil resistir à tentação.

Será realmente um texto novo para um romance antigo. Machado de Assis fez o mesmo, pelo menos há uma nota na terceira edição de "Brás Cubas" em que ele confessa que cortou "três dúzias de linhas" e "alterou palavras aqui e ali". É mais ou menos o que estou fazendo, embora em escala bem maior.

Afinal, o "Brás Cubas" pertence à fase madura de Machado, e não ao início de sua carreira.

"O Ventre" é o meu primeiro livro, quando não tinha nenhuma técnica e não dominava a linguagem. Pior: foi o único livro meu que escrevi diversas vezes, com versões até contraditórias.

Lembro que o Ênio Silveira, meu editor, já havia lido o original que lhe encaminhei em 1956 e decidira publicá-lo em grande estilo, apesar de a cópia que lhe entreguei ter saído lamentável.

Mas aí surgiram fatos novos: um parecer anônimo da Companhia Nacional (que era a matriz paulista da Civilização) reclamava do conteúdo do livro, dando razão à comissão que julgou o prêmio Manuel Antônio de Almeida, considerando-o o melhor dos concorrentes, mas negando-lhe o prêmio (que não foi dado naquele ano) devido à rudeza da linguagem e, sobretudo, pelo conteúdo sombrio e imoral.

E houve a publicação dos contos de Guimarães Rosa ("Corpo de Baile"), uma bomba literária, que mexia fundamente com a linguagem e a técnica da ficção. Até então, eu nunca tinha lido Guimarães Rosa, que mais tarde foi meu amigo e vizinho do Posto 6. A pedido do Ênio chegamos a fazer um livro juntos ("Os Sete Pecados Capitais").
Fiquei confuso. Afinal, minha formação no setor da literatura brasileira era concentrada em Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto e Machado de Assis.
 
Somente fui ler nossos autores contemporâneos depois de ter escrito o primeiro livro.

A explosão do Rosa me baratinou, evidente que não me atraiu pela sua temática, com a qual não tinha qualquer afinidade, mas me seduzi pela sua linguagem, que era nova, instigante. Nunca tentei imitá-lo, nem mesmo tomá-lo como ponto de referência.

Descobrindo uma nova expressão para contar uma história, enxuguei de tal maneira o texto de "O Ventre" que ele ficou absurdo, para não dizer que ficou idiota.

Senti isso e mais uma vez o reescrevi, "da capo", tentando voltar ao meu texto original, que resultou numa mistura complicada e ridícula. Há capítulos em que me derramo, outros em que me mutilo, enfim, o texto que serviu de base à primeira edição e seguintes foi lamentável.

Apesar disso, tive boa crítica, algumas espinafrações veementes, mas há aqueles que o consideram como o meu melhor livro, inclusive o próprio Ênio, que leu todos os meus outros livros, inclusive o "Quase Memória" que lhe entreguei no Procardíaco, uma semana antes de sua morte.

Eu sentia a fragilidade do texto, embora assumisse a história. Estava apenas perdido em questão de linguagem; na realidade, ainda não tinha uma. Só agora, 40 anos depois, e com a facilidade do computador, encontrei o estilo que me satisfazia, embora nem sempre o considere adequado ao tipo de histórias que pretendo contar.

Vou agora publicá-lo em nova editora. Estou na metade do livro, em sua sétima edição. Terminei ontem a revisão da primeira parte, Flavinha garante que terminará a digitação na segunda-feira; no fim da semana, pretendo entregá-lo ao Luiz Schwarcz. Incluirei uma pequena nota como a de Machado de Assis, que em Brás Cubas mexeu em apenas "três dúzias de linhas".

Folha de São Paulo, 21/10/2011