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O prêmio como castigo

 

“A pergunta que alguém inevitavelmente lhe fará é: mas por que você odeia esse pobre homem? Você não precisa responder. Você é o Diabo, você tem suas idiossincrasias”


Vamos supor que você seja o Diabo (se você é mesmo o Demo, se está lendo este jornal de tridente em punho e ao lado de um caldeirão com azeite fervendo e cheio de pecadores, pode parar por aqui: você já sabe o que vou dizer). Você é o Diabo, você não gosta da humanidade, mas tem alguém que você detesta em particular: um humilde brasileiro que era lavrador mas que, depois de ter as pernas amputadas em conseqüência de diabetes, passou a viver da venda de confeitos à beira da estrada. A pergunta que alguém inevitavelmente lhe fará é: mas por que você odeia esse pobre homem? Você não precisa responder. Você é o Diabo, você tem suas idiossincrasias, você escolhe a quem vai execrar.


Então: você quer arruinar (ainda mais) a vida desse brasileiro. Como consegui-lo?


Aqui vai uma sugestão prática: faça com que ele ganhe na loteria. Isto mesmo: faça com que ele acerte em cheio na Sena, ganhando, por exemplo, R$ 52 milhões. E aí espere algum tempo.


A vida desse homem logo mudará. Ele agora está rico, muito rico, sobretudo num país pobre. Então ele comprará uma fazenda, ele se mudará para uma enorme casa. Ah, sim, e ele casará. Não é difícil, para quem tem R$ 52 milhões, arranjar uma esposa. Mesmo que ele seja cinqüentão, conseguirá uma garota bonita, que, de bom grado, aceitará ser sua esposa. E aí começará o inferno (não o seu Inferno, o inferno dele aqui na Terra).


A esposa arranjará um amante, talvez dois. Por que não? Ela já tem a situação econômica assegurada, agora quer um pouco de prazer, e para isso homens mais moços são os indicados. Seguir-se-ão as brigas, as disputas, não só com a esposa, com familiares também: afinal, ninguém é eterno, e a morte de um milionário significa uma apreciável herança. Morte esta que pode, claro, ser apressada. O homem é assassinado. Adeus, fortuna, adeus, casarão. Adeus, venda de confeitos à beira da estrada. Adeus, vida cruel.


Surrealista, essa história? Não. Surrealista foi o prêmio que o homem ganhou na loteria. Num passe de mágica ele se viu multimilionário, e bota múlti nisso. Porque a loteria é assim: a pessoa aposta uma quantia, em geral modestíssima, e de repente tem uma grana que não termina mais. Vocês dirão: nada de excepcional nisso, o jogo tem dessas coisas. É. O jogo tem dessas coisas. Só que nós vivemos num país em que o jogo está, teoricamente, proibido. Mas o jogo não é o problema. O jogo atende ao nosso espírito lúdico, ao nosso desejo de brincar com o Destino. O problema é a quantia. O problema é a mensagem embutida nesse prêmio descomunal. É uma mensagem bem clara: não é preciso trabalhar para ganhar dinheiro, basta ter sorte. Daí as filas que se formam nas lotéricas.


Mas a sorte freqüentemente acaba quando o ganhador recebe o dinheiro. Não raro são pessoas pobres, que precisariam de uma minúscula fração do prêmio para melhorar de vida, e que nem sabem lidar com tanto dinheiro. A tragédia de Rennê Senna (notem a ironia desse sobrenome) talvez até seja excepcional, mas aponta para a possibilidade de outras tragédias. Será que é preciso acenar às pessoas com essa descomunal grana? Não seria o caso de estabelecer um teto para os prêmios lotéricos, um teto compatível com a situação dos brasileiros, um teto que, superado, proporcionaria recursos para a área social?


O Diabo certamente não gostaria dessa idéia. Mas o Diabo, como sabemos, tem as suas idiossincrasias.


Correio Braziliense (DF) 2/2/2007