Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O poema de um povo

O poema de um povo

 

O poema brasileiro por excelência, o poema que fala por nós, que nos representa e que nos fixa para sempre como País que tem alguma coisa de novo para dizer ao mundo - "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima - sai agora em nova edição. Para que chegássemos a essa "Invenção", foram necessários, ao Brasil, mais de quatro séculos de caminho percorrido, de idioma revivido, recriado, recapturado, de experiências dirigidas em várias profundidades, à espera de uma nova seiva de palavras e de sons fornecidos pela terra que é nossa. E o poeta que atingiu esse ponto de desbravamento, Jorge de Lima, teve de percorrer sua própria trilha, durante um bom tempo, em versos de boa feitura, mas ainda não enquadrados no espírito de todo um povo.


"Invenção de Orfeu" tem sua estirpe. Vem de uma linguagem que poderia ser colocada nesta série: Grécia-Roma-Dante-Igreja Católica-Portugal-Camões-Brasil. Esta junção de nomes de povos, de poetas e de uma instituição religiosa, é importante para a compreensão do poema de Jorge de Lima, principalmente porque "Invenção de Orfeu" é o mais brasileiro dos trabalhos já escritos no Brasil.


O "Arma virumque cano" e "As armas e os barões assinalados" se juntam àquele começo de "Um barão assinalado", não só pela repetição das palavras mas também, e principalmente, porque representam a permanência da tradição, daquela parte da tradição que o tempo não mata. O mal jaz sempre na conservação de valores mortos, das imagens que foram aos poucos perdendo o sentido, no ritmo sem vitalidade. Há uma linha essencial que vem desde os poetas gregos até os nossos dias e que um poeta pode, em determinado momento, pegar e inserir na sua linguagem.


De repente, não mais do de repente, Inês renasce no poema de Jorge de Lima. É a Inês de Camões, qual nova Beatriz, surgida no século XVI de nossa era, mas vai-se ler e é uma Inês diferente, brasileira, pois, nas palavras de Jorge de Lima, "Inês em repouso é movimento, nada em Inês é inanimado e lento", "eterna, linda Inês, paz, desapêgo."


No canto IV de seu poema, "As aparições", Jorge de Lima atinge plano apocalíptico, usa então o cavalo como símbolo de encantamento:


"Era um cavalo todo feito em lavas / recoberto de brasas e de espinhos. / Pelas tardes amenas ele vinha / e lia o mesmo livro que eu folheava./ Depois lambia a página, e apagava / a memória dos versos mais doloridos; / então e escuridão cobria o livro, / e o cavalo de fogo se encantava."


O cerne do poema de Jorge de Lima é o oitavo canto, "Biografia", que o poeta não dividiu em partes, como nos outros cantos. Feita em sextetos, a biografia não é só a do poeta, mas também a de um povo, de uma tradição, de uma herança religosa e da memória das gentes. Mostra aí, a linguagem de Jorge, todos os valores sobre os quais repousa o poema, com recantos poéticos impensados, torções vocabulares inesperadas e versos que lanham o pensamento de quem os lê, de tão pungentemente realizados. Num de seus trechos, dirige-se à língua que utiliza:


"Língua remota, língua de presenças,/de ressuscitadas ressonâncias, amo-a, / que me deu a experiência dos abismos, / e também das realidades inefáveis / e também da saudade amarga e doce, / e também das verdades mais ardentes."


"Invenção de Orfeu" está para o poema de Camões como a "Divina comédia" estava para Virgílio. Uma direção de pensamento, de modo de sentir as coisas, perpassa por todos os quatro poemas. Por falar em "coisas", lembro frase que foi base de um debate literário de que participei na Romênia. O tema era: "As coisas não mudam".


A pedra, o céu, a montanha, o mar, as folhas e flores, a água de beber ou da chuva, mantêm-se os mesmos desde os tempos de Homero. Ao longo de "Invenção de Orfeu" o poeta se dirige às coisas, nutre-se delas, molhando-as com a emoção de quem, sabendo-se dono das palavras, procura entender as coisas que formam o seu mundo.


Jorge de Lima usa e abusa da extravagância em "Invenção...", cujas palavras voltam-se contra si mesmas e provocam estranhas ressonâncias, dissonâncias voluntárias, numa impressionante demonstração de domínio da técnica poética. Dentro do plano geral do poema, esses jogos verbais combinam com a estrutura da obra.


O grande poeta é justamente aquele que é capaz de empregar de modo poético a mais comum das palavras. Lembro-me de ter ouvido de Paul Eluard em Paris a declaração de nunca se ter sentido tão feliz como quando empregou a palavra "merde" num poema e descobriu que ela possuía um sentido poético dentro daquele verso e daquele poema.


Diante de "Invenção de Orfeu", descobre-se: o mistério não existe. Seja qual for o mistério, ele não existe. Seus contornos são tão claros que somente a tendência que o homem tem para o inútil pode explicar a existência do poeta, isto é, daquele que não se apega ao desnecessário e consegue ver tais quais são, num momento iluminado, as coisas, as pessoas e os acontecimentos. "Invenção de Orfeu" confere, ao Brasil, uma presença unificada.


Nossa dependência de uma tradição, de uma Igreja, de um estilo, de um modo de falar, de um sistema de vida, e nossos desejos, nossos sonhos, nossas paisagens - tudo foi matéria para Jorge de Lima, que extraiu de um passado que, além de nosso, possui raízes em tempos mais antigos, a mensagem de um povo, de uma estranha aglomeração de gente dentro de um espaço.


A nova edição de "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima, é da Record. Prefácio de Carlos Murilo Leal. "Orelha" de Claufe Rodrigues. Projeto gráfico de Regina Ferraz. Ilustração de capa de Wassily Kandinsky.


 


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 17/05/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 17/05/2005