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O poema além do poema

 

Durante alguns anos, na segunda metade do século XIX, no ambiente de efervescência intelectual da Universidade de Oxford, foi Gerard Manley Hopkins considerado uma espécie de herói e tido como capaz de vir a ser a mais certa glória literária de sua geração. Isto de fato aconteceria, mas de maneira diversa da que todos imaginavam porque, em 1866, Hopkins se converteria ao catolicismo para ingressar na Sociedade de Jesus.


Como jesuíta e futuro sacerdote, queimou quase todos os seus poemas e resolveu não mais escrever. Contudo, não só voltaria a fazer poemas, com autorização de seus superiores, mas também sua obra anterior, conservada por amigos, não se perdera de todo. Mas Hopkins passou a vida mais ou menos desconhecido e só depois de sua morte se compreendeu o alcance de sua poesia.


No fazê-la, abandonou Hopkins a tese de Santo Tomás de Aquino de que só o universal está ao alcance da inteligência, para adotar a tese de Dun Scotus de que, num relance, é o homem capaz de perceber o individual em cada coisa. Com isto, passou Hopkins a usar a palavra além da palavra e a criar o que se pode chamar de poema além do poema.


O livro "O tempo além do tempo", que reúne poemas de Ivan Junqueira, também poeta que pega o individual de cada coisa e várias épocas, mostra-nos um cultor do verso que se encontra na mais avançada vanguarda da poética brasileira de qualquer tempo.


Desde seu volume de estréia, "Os mortos", sobre o qual escrevi há algumas dezenas de anos, vinha ele se assenhoreando, pouco a pouco, desse domínio do verso brasileiro, ao ponto de hoje poder apresentar uma recolta com a qualidade que permeia todo "O tempo além do tempo".


Há uma linhagem na poesia, há uma linhagem no corpo, há uma linhagem na palavra que de repente vai além de si mesma. Há uma linhagem de William Blake a San Juan de la Cruz. E que linhagem brasileira poderíamos colocar a obra e Ivan Junqueira? Na de Jorge de Lima, por um lado. Talvez, no estrangeiro, na de T. S. Elliot por outro. Na realidade, seu uso das palavras é muito pessoal, sem linhagem necessária.


Leia-se este poema histórico, inspirado na figura mais romântica de Camões, "A morte de Inês": "Foram dois, sim, deles guardo a injúria,/ sepulta neste pélago do mundo,/ onde mais nada me apetece ou pulsa/ e em vão meus lábios rezam a pedras mudas./ Sim, foram dois, eu sei, alfanje em punho, / que se soltaram contra mim, aduncos,/ com garras de rapina e cenho duro/ tão logo el-rei foi surdo às minhas súplicas/ e à fala que lhe fiz entre soluções,/ pondo ali de redor meus três miúdos./ Á vista dele trespassou-me o gume/ com um dilúvio de aguilhões e acúleos./ Que dor, infante, a de não mais ser tua!/ E foi então que a noite me fez sua".


Além da beleza normal das palavras que o poeta usou para descrever a cena, chamo também a atenção para as rimas vocálicas em "u", sem a preocupação de rimar toda uma sílaba. Assim, "injúria", "pulsa", "mudas", "punho", "aduncos", "duro", "súplicas", "soluços", "miúdos", "gume", "acúleos", "tua" e "sua" mantém o tom do poema de modo diferente.


O mesmo acontece com o poema chamado "A mão que escreve", em que a vogal escolhida foi "e", com os sons, exclusivamente da vogal e sem a preocupação de um apoio consonantal, mantêm a melodia inteira dos versos, como em "aquela", "inepta", "gleba", "incrédula", "eterna", "périplo", "inércia", "pérola", "pélago", "réprobo", "nexo", "crédito", "féretros", "Grécia" - com o som aberto do "é" marcando o ritmo de um modo ao mesmo tempo célere e sério.


Trata-se de uma busca original de atingir o âmago do ritmo de um verso, fazendo com que a palavra vá além da palavra, o verso além do verso e acima de tudo o "tempo" - inclusive no sentido musical da palavra "tempo" e outros significados proustianos ou não, que essa palavra veio aos poucos assumindo.


É sempre uma alegria quando um poeta dá um salto além de si mesmo e além da poesia de seu meio. Este é um livro que nos obriga a um novo aferimento que temos de fazer a cada fase de nossa literatura. Como parte de um processo. Poesia de leitura obrigatória, "O tempo além do tempo" (Antologia), de Ivan Junqueira, é um lançamento da Editora Quase. Organização e prefácio de Arnaldo Saraiva.


Tribuna da Imprensa (RJ) 31/7/2007