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O nosso faroeste

 

Em parecer que escrevi para o editor Peter Owen, de Londres, sobre livros brasileiros cuja tradução para o inglês recomendo, comecei pelo romance "O tronco", de Bernardo Elis, pois nele vejo a mais vigorosa marca daquilo que chamo de "ocupação de território literário" no Brasil. A história de nossa formação como povo e como nação emerge, em traços fortes, dos relatos feitos como ficção, mas com uma realidade que supera as minúcias da historiografia.


Costumo dizer que nada mais nítido e claro do que a descrição da batalha de Waterloo por Stendhal quando o romancista leva Frabrício, em "A cartuxa de Parma", a atravessar o campo da luta e a divisar a figura de Napoleão em seu momento de queda. A reconstituição de nossa geografia real precisava, naquela década de 50, quando saiu "O tronco", de uma reafirmação do Centro-Oeste e dos sertões que se estendiam para além da margem esquerda do São Francisco e chegavam às margens do Tocantins.


Vinha Bernardo Elis, com seu romance, dar espessura literária ao povoamento dos longes de Goiás, com seus conflitos por terras e por bois. No mesmo período de 1955/56 começamos a falar de "Grande sertão: Veredas" e "O tronco".


Os dois romances - o de Guimarães Rosa e o de Bernardo Elis - tiveram a participação de um terceiro - "Vila dos Confins", de Mário Palmério - no largo gesto de desenrolar os confins de uma região brasileira e, naquele tempo, que antecedeu de muito pouco a construção de Brasília, como que revelar os aspectos básicos de novos territórios e de seu povo.


Faroeste? Talvez, mas como sempre acontece nas tentativas simplistas de classificação, o primitivismo das primeiras povoações e das cavalgadas pelos ermos e gerais e das lutas pelo poder, qualquer que fosse este, criou condições para uma literatura de alta dramaticidade e enorme pungência como a de Bernardo Elis no romance que recomendei ao editor inglês.


O tecido social subjacente à conquista do Oeste provocou o aparecimento de escritores que interpretam aquele mundo que parecia recém-saído dos fornos da criação. Era, por isto, natural que a linguagem de Bernardo Elis fugisse às louçanias da língua falada nos centros urbanos, mais ligados ao poder grande. O português brasileiro de "O tronco" tem a violência dos sentimentos primeiros do homem. Suas descrições mostram uma estranha nitidez de poucas palavras. Poucas e diretas. Como neste aproximar dos jagunços:


"Nisso, um foguetão arrebentou para os lados da Grota. Ao seu estrondo, pipocavam tiros ao redor de todo o povoado, como se fosse um rastilho de pólvora. Parecia fogo em tabocal: tiros mais fortes, outros mais fracos. Ao mesmo tempo, a barulheira: toque de caixas, tambores, latas, ronco de buzina, gritos, gemidos, choros. Lamentos. Zurro de jumento, relincho de cavalo, canto de galo".


No caso de Guimarães Rosa, o faroeste abrange uma larga faixa do território brasileiro. A região do São Francisco, perto do Urucuia, pegando o norte de Minas, o sul da Bahia e o leste de Goiás, é, sob vários aspectos, o centro do Brasil. As andanças dos personagens de "Grande sertão: Veredas" por essa região formam um resumo de todo o País.


Nenhum dos habitantes do romance pensa em cidade grande (Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo ou Salvador). Talvez o maior agrupamento humano citado em "Grande sertão: Veredas" seja Montes Claros. Não se fixando em nenhuma outra cidade maior, concentrou o romancista a ação da história em território a que pouquíssimos brasileiros de outras zonas tinham, até então, dado maior atenção.


Essa característica geográfica do enredo já é sintomática, levando-nos a achar que, com o trabalho de Guimarães Rosa, incorporamos mais um pedaço de terra ao país, como acontecia na obra de Bernardo Elis. É sintomático também que os personagens desses romances não mostravam consciência do problema da terra, que surgiria mais tarde com o Movimento dos Sem Terra e que só existira antes numa fase em que uma visão da terra ao mesmo tempo romântica e econômica atravessara nossa literatura.


Nos romances de Rosa e Bernardo, as pessoas andam, brigam, amam. Fazem as coisas essenciais de modo, senão primitivo, pelo menos primário. A vingança e o amor, motivadores dos heróis de histórias desde os gregos, determinam também os movimentos de Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Joça Ramiro.


Com "O Tronco", de Bernardo Elis, e "Grande sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, foi como se o Brasil tivesse tomado posse definitiva de territórios que, antes deles, nos fossem estranhos e apenas formal e documentalmente fizessem parte de nossa existencialidade nacional.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 02/10/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 02/10/2002