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O método em Proust

 

Há sempre, no caso do maior escritor do século XX, que se atentar para o Método. Pois nisto reside o plano mais largo da obra de Marcel Proust. Livros como o de Edmund White, da maior utilidade no entendimento das "experiências proustianas", estuda com pormenores as figuras que cercaram Proust, principalmente Robert de Montesquieu, mas não se preocupa demasiadamente com a técnica literária do autor.


Que tipo de enfoque utilizou Proust na criação de sua gente, de seu tempo, de seu mundo? O que quem sabe a pura análise exterior não iluminará a realidade, mas sabe também que abandonar a análise não o ajudará em nada. Assim, tinha de unir o espírito de identificação no objeto com a distância do objeto. Identificar-se e, contudo (ou por causa disso mesmo, para tornar mais válida a identificação), manter a distância. Conseguiu, assim, Proust, fazer uma revolução e retomar o caminho dos clássicos (para os quais, segundo Rivière, a literatura era "um discurso sobre as paixões"), para torná-lo mais amplo e nele descobrir novas rotas.


As opiniões críticas dos poetas e romancistas valem como pontos de comparação no aferimento de suas obras, tanto no que elas possam ter de semelhantes às suas teses, mas também, e principalmente, no que elas têm de dissemelhantes. Se um simbolista fala, num artigo de crítica, sobre o valor da intuição, estendendo-se longamente sobre o assunto, e vai-se ver não há na sua obra o menor sinal de intuição, uma análise dos motivos que o tornam apaixonado por um método que não sabe usar, será da maior utilidade no aferimento de seus livros. No caso de Proust, a realidade de sua obra está em inteiro acordo com sua tese sobre o que deva ser uma obra de arte.


Em seu "Contre Saint-Beuve", diz Proust: "A obra de Saint-Beuve não é uma obra profunda". E por que não? Porque ele não reconhece que "um livro é um produto de um outro eu, diferente do que manifestamos em nossos hábitos, na sociedade, em nossas vidas".


E essa obra escapa sempre a qualquer observador de fora. Daí, o fato de nenhum crítico ser capaz de, usando apenas recursos externos e científicos de análise, compreender jamais obra alguma de arte. O crítico precisará de manter a mistura de identificação e distância que Proust acha indispensável à própria obra. Analisando apenas, tentando fugir, à obra para estudar em laboratório um acúmulo de informações ou dados estatísticos sobre a mesma, estará o crítico se afastando da possibilidade de qualquer aproximação válida, de qualquer "approach" que ilumine a obra por dentro e torne mais claras algumas de suas reentrâncias.


Só fazendo, na crítica, no escrito considerado crítico, outra obra de arte, conseguirá a crítica atingir o osso da obra de arte que esteja a comentar. Daí, o fato de que Lawrence falando de romance - Keats, de poesia - Elliot, idem - Proust para obra de arte em geral e da literária em particular - vão todos muito mais longe do que o mais bem equipado dos críticos literários de qualquer época.


No fundo, para Proust a obra de arte não tem apenas um fundo religioso: ela é também, em si, uma religião, e uma religião diferente das outras, diferente, por exemplo, no caso de à "La recherche du temps perdu", da religião que seria "Guerra e paz" ou religião contida em "Os Irmãos Karamazoff".


Vinda do século XIX, à "La recherche..." surgia como a primeira obra real e inteira da literatura do século XX. O telefone, o automóvel, o avião e outros componentes tecnológicos do meio-século das guerras mundiais, são parte do mundo de Proust, e a sociedade que se transforma, o tipo de vida urbana, quase metropolitana, que rompe com o tipo de vida do século XIX, tudo se mistura nas imagens que Proust recupera, reconstrói e solta no seu livro, aparentemente sem ordem e sem método, mas na realidade subordinadas a duro método, um método com M maiúsculo, num detalhismo de construção que almejava o monumental - que almejava e que chegou lá. Explicando-nos, dizendo como somos, abrindo claros no entendimento das paixões humanas, Proust preparou o modo de vida das gerações que a ele se sucederam.


Antecipando-nos, ele nos explicou a todos nós que vivemos neste começo de um milênio. Entendendo-se, explicando-se a si mesmo - e a seus companheiros de tempo, de cidade e de ambiente social - ele como que nos justificou. Porque a verdade é que o homem não foi mais o mesmo depois de haver sido recriado por Marcel Proust que, ao fazê-lo, soprou nele - e em cada um de nós - uma vida nova e um novo entendimento.


"Marcel Proust", de Edmund White, é um lançamento da Editora Objetiva. Tradução de Anna Olga de Barros Barreto. Coleção Breves Biografias. Capa de Ettore Bottini.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 10/08/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ), 10/08/2004