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O menino e os lobos que brigam

 

Em diversas situações, ouvi a história do menino que busca o conselho de um mestre acerca da luta que dois lobos imaginários disputam em sua mente por sua atenção e sua preferência.

O diagnóstico de sofrimento mental vem sendo denunciado pela Organização Mundial da Saúde como o mais aflitivo estado de desordem emocional afetando pessoas no mundo todo. Adultos e crianças, todas as classes. Isso põe em questão a ideia de que algum dano afeta mais certas camadas ou grupos humanos. O sofrimento parece universal, atua como pandemia.

Ricos não são imunes à desordem emocional, e o sofrimento pode também habitar mentes bilionárias. A expressão "dinheiro não compra felicidade" pode ter amplo sentido. Alguns bilionários vivem seu inferno astral e lançam mísseis e fogo pelas ventas, enquanto os deserdados da terra sofrem o transtorno.

A ecologia não se refere somente ao que está fora do corpo —tem sentido pensar o sofrimento mental como item dos extremos climáticos, que vai além do que nos rodeia, afetando o corpo e a mente de seres humanos.

A parábola dos dois lobos encerra a mensagem de que a luta será vencida pelo lobo que o garoto melhor alimentar e cuidar. Desnaturada, foi ao evento que reuniu centenas de pessoas por três dias seguidos em um parque natural na cidade de Vila Velha, ao lado da capital do Espírito Santo, Vitória. Reuniu cientistas e mestres de diversas culturas e origens étnicas; indígenas e quilombolas. Uma audiência interessada dialogando com biólogo, botânico e neurocientista sobre o abismo cognitivo que afeta nossa relação de humanos com aquilo que aprendemos nos bancos da escola ser natureza.

Desnaturamos tudo o que está ao redor —meu corpo não sendo a natura. Abstração de humano, avança como máquina produzindo o que o poeta Drummond chama de máquina do mundo. Maquinação lembra José Miguel Wisnik. Comemos pelas beiradas um planeta e meio a cada volta que damos no Sol.

O biólogo Fábio Scarano ensina, em aula pública, que a palavra natureza, em línguas faladas por 7 bilhões de pessoas, tem um de três sentidos possíveis: mundo, todo ou espírito. Em nenhuma língua, natureza significa o não humano, que é o significado que a modernidade deu a ela. Mais interessante ainda são os casos dos diversos idiomas ameríndios e de povos insulares do Pacífico que não possuem palavra equivalente nem à natureza nem à sociedade, por verem essas duas entidades como uma só.

O mar e tudo o que transborda dos oceanos para a terra firme, mundo natural e seres humanos, formam a mesma natura. Mundo que pode colapsar enquanto furamos o fundo dos oceanos ou aplanamos paisagens terrestres. Tudo para garantir um passeio sobre quatro rodas. Desnatura convoca a pensar a ecologia para além de jardinagem, terra para além do extrativismo mineral, como escolha e não somente destino.

Os lobos também pedem socorro ante a voragem humana do pós-capitalismo.

Folha de São Paulo, 23/05/2025