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O juiz no divã

 

A maioria dos juízes precisa de tratamento psicológico. A Federação Paulista de Futebol encomendou ao Incor estudo inédito e de resultado revelador: 58% dos árbitros de São Paulo apresentam algum problema, sobretudo por estresse. Folha Esporte, 5 de março de 2006.

Tudo começou quando ele notou que, ao entrar em campo, ele ficava trêmulo, suava abundantemente, tinha a impressão de que ia desmaiar. Isto é dos nervos, disse a mulher, que entendia dessas coisas. E era verdade. Juiz de futebol há mais de 20 anos, ele enfrentara numerosos conflitos e até agressões. Sempre se saíra bem.


Agora, porém, a situação mudara e comprometia até o seu trabalho. Tinha, portanto, de tomar alguma providência. Recomendaram-lhe psicanálise. Lembrou-se de um vizinho que, depois de exercer o magistério, tornara-se analista, meio que por conta própria. Foi procurá-lo e começou o tratamento. Melhorou, mas mesmo assim, cada vez que entrava em campo era aquele pavor. Acabou por decidir: só apitaria uma partida acompanhado por seu terapeuta. Que, embora relutante, concordou em aceitar a proposta. Convencer a federação foi igualmente difícil, mas, considerando que se tratava de um juiz veterano e dedicado, resolveram abrir uma exceção. Mais confortado, ele se sentiu preparado para enfrentar o desafio. Que ocorreria no domingo seguinte e não seria pequeno: tratava-se de uma partida entre dois times importantes, clássicos rivais.


Tudo correu bem, até que, aos 40 minutos do segundo tempo, ele apitou um pênalti. Duvidoso, na verdade, até para ele: achava que tinha visto o zagueiro fazer falta no centroavante adversário, mas o time inteiro protestava em altos brados contra o que consideravam uma injustiça. Sentindo o estresse crescer de maneira perigosa, interrompeu o jogo e mandou chamar o analista. Um divã foi colocado na pequena área e de imediato teve início a sessão: ele queixando-se do zagueiro, um homem brutal. Sim, disse o analista, mas há um detalhe que você não está levando em consideração. Qual, perguntou o juiz intrigado.


Ele tem o mesmo nome de seu pai.


Era verdade, como o juiz constatou, surpreso. O analista prosseguiu: eu acho que no fundo você está agredindo o homem com quem você sempre teve um conflito.


O juiz quis saber a causa de tal conflito. O analista respondeu que isso demandaria uma longa investigação, de anos, talvez.


Anos? Dificilmente a partida poderia ser suspensa por tanto tempo. O juiz manteve o pênalti. Ouviu as ofensas habituais, mas resignou-se. Um dia ele entenderia e aceitaria, aquelas coisas. E aí poderia trilar o apito final, dando por encerrado o tratamento.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 13/03/2006

Folha de São Paulo (São Paulo), 13/03/2006