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O fascínio de um romance

 

O que, em primeiro lugar, se destaca neste romance de Amélia Sparano, "A espectadora (Entre o ocaso e o amanhecer)", é sua agilidade narrativa, pois, como se trata de uma história que repousa sobre personagens, a dinâmica do relato mantém um movimento incessante de situações que a romancista, como "espectadora", acompanha, minuto a minuto, de tal modo que é toda uma fascinante faixa de emoções que ela, como narradora, passa para o leitor.


Em seu livro "The art of fiction", recusa Henry James as divisões que a crítica de seu tempo (1843-1916) fazia, entre romance de "incidentes" e romance de "personagens". Dizia James: "Que são os personagens senão a determinação dos incidentes? Que são os incidentes senão a ilustração dos personagens?" A tese de Henry James pode ser interpretada de modo também diferente.


Embora não aceitasse classificações, colocava James tudo - incidentes, situações, ações, pensamentos - dentro do personagem, isto é, dentro do homem, dentro da mulher. A frase de Sófocles no "Édipo Rei" - "de que vale a nave, de que vale a torre, sem gente dentro, que as habite" - já exprimia essa percepção de que histórias - com tempo e espaço, furores e vitórias - acontecem a pessoas que delas participam, que são elas.


"A espectadora" tem um tempo e um espaço definidos: o tempo é o de hoje, o espaço é o da mundologia brasileiro-carioca. A narradora, espectadora, é testemunha da história; é convidada por amiga a ir a uma festa de bodas de prata de seus pais, no interior do Estado do Rio e, tendo recusado, a outra insiste: "Venha conhecer minha gente. São todos pirados, cada qual de seu jeito."


A "espectadora" passa então um fim-de-semana e tem diante de si todo um grupo de pessoas em seus encontros e desencontros, reagindo, brigando, reclamando, fugindo, voltando, com momentos em geral de ódio, às vezes em busca de entendimento, na realidade cada um em busca de si mesmo - que a romancista registra numa linguagem direta, servida por diálogos precisos.


Desde o começo a posição dos personagens é de escolha e decisão. Fazer ou não fazer seja o que for? Aceitar ou não aceitar? Decidir ou não decidir? Combater ou compreender o problema dos sem-terra ou qualquer outro movimento no ar: nas telas, na imprensa, nos diálogos.


A "espectadora" tudo vê e tudo absorve. Com personagens em oposição, consegue ela unificar o mundo de que é "espectadora", dando-lhe consistência e cola (cola mesmo, goma, capaz de grudar coisa com coisa, gente com gente). Sabe-se que este é precisamente o privilégio da ficção literária: transportar a vida que se vive para as palavras que a envolvam e a que dêem sentido.


Num romance como o de Amélia Sparano, com essa precisão de diálogos e com sua população diversificada e, contudo, parecida, já que todos os personagens pertencem ao mesmo ambiente e representam posturas e tendências que são as de um tempo, mas se fixam num modelo universal, pode cada leitor chegar a um enriquecimento da própria vida, por aceitação ou oposição, tornando-se também espectador e partícipe de uma experiência.


Em seu útil livro "O trabalho intelectual", deixou Jean Guitton as seguintes palavras: "É necessário ler novelas para conhecer o sentido de nossas vidas e o das vidas que nos rodeiam, sentido que o embrutecimento cotidiano nos oculta. É necessário ler novelas para penetrar em meios sociais diferentes do nosso e encontrar, ali, sob a diferença de costumes, a semelhança da natureza humana; para estudar, como num laboratório, de um modo concreto e sem as transposições da moral, os problemas fundamentais: o do "pecado", o do "amor", o do "destino"; para enriquecer, enfim, a própria vida, com a substância e a magia de outras existências."


Como romancista, mantém Amélia Sparano uma posição de intérprete das gentes. Sua visão de "espectadora" mostra-a profundamente interessada nas coisas. Nada do que existe no mundo, em que insere seus personagens e seus acontecimentos, lhe é estranho. A velha declaração latina - "Nihil humanum a me alienum" - cabe por inteiro em sua vida literária. Ao descrever a festa do romance, o menor detalhe é importante.


A roupa de um hóspede, um sofá, a garrafa de champanhe, os beijos dados e recebidos, tudo atrai sua atenção. Mas o que mais prende seus olhos de "espectadora" é o espetáculo de homens e mulheres vivendo juntos, na tentativa do relacionamento. A autora sente que no mundo estranho das relações está a dramaticidade geral das coisas.


Relação de objeto com objeto, de acontecimento com acontecimento, de gente com gente, e de idéias, sentimentos, percepções, memórias. Revela Amélia Sparano possuir o talento de mostrar relações, de colocar um teto comum sobre grupos heterogêneos de pessoas. Sabe ela que, no encontro do homem com as coisas e com seus semelhantes, jaz um constante renascer de sentimentos, de relações, capazes de lançar um pouco de luz sobre algumas faces da vida.


Dentro do aparente desligamento de todas as coisas, vai Amélia Sparano descobrindo relações, unindo, cosendo realidade com realidade, interessada em tudo o que existe. A narrativa de "A espectadora (Entre o ocaso e o amanhecer)" flui lépida, em diálogos que parecem copiados de gente de verdade, num livro cuja leitura recomendo vivamente. Lançamento da Editora Comunitá, capa e arte final de Alberto Carvalho.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 29/06/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ), 29/06/2004