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O corpo como relógio

 

O relógio mecânico é uma invenção da modernidade. Antes existiam as ampulhetas, os relógios de sol, as clepsidras, ou relógios de água - dispositivos que assinalavam a passagem do tempo pela marcha do sol ou pelo fluxo de uma substância, areia ou água. Mas o relógio mecânico era diferente. Uma máquina: dava-se corda, um pêndulo ficava oscilando ritmicamente. Depois os relógios se tornaram portáteis e ficaram ao alcance de todos, ou quase todos, uma necessidade gerada pela constatação de que tempo é dinheiro.


Quase ao mesmo tempo em que surgia o relógio mecânico, os médicos começaram a dissecar cadáveres, explorando o corpo humano e seu funcionamento, coisa que foi facilitada pela descoberta da circulação pelo inglês William Harvey. Nesta mesma época, Descartes postulava que nosso organismo funciona como uma máquina. Ou seja, uma convergência de idéias que, de algum modo, veio a ser confirmada pelas pesquisas médicas.


Existe, sim, um relógio biológico que regula o funcionamento de nosso organismo e torna certos fenômenos previsíveis, como o adormecer e o despertar. Ou seja: temos ritmos corporais, objeto de estudo da cronobiologia, a biologia do tempo. Nosso ritmo é regulado por um "relógio interno", localizado no cérebro. E este ritmo condiciona boa parte de nossas vidas, como mostram as perturbações causadas pela mudança de fuso horário - o jet lag. Uma vez viajei ao Japão e, depois de 24 horas sem dormir, cheguei em Tóquio à noite. Estava exausto, mas não tinha vontade de ir para a cama: meu relógio biológico não marcava 20h, mas sim o "tempo brasileiro", 8h. O médico que me recebeu (era um evento de saúde pública) aconselhou-me, contudo, a me recolher. Caso contrário, disse ele, você vai ficar "descontrolado" por dias. Segui o conselho e de fato, em alguns dias, estava adaptado.


Relógios biológicos às vezes estão por trás de incompatibilidades conjugais. O caso típico é representado pelo marido que deita cedo e acorda cedo, ao contrário da esposa que adora a vida noturna mas que de manhã está mal-humorada. Muitas brigas nasceram daí, e não adianta um dos cônjuges dizer para o outro: "Fala com meu relógio biológico". A resposta provavelmente será: "Fala com meu advogado porque estou me divorciando."


O relógio biológico também está associado a problemas circulatórios, como a falta de ar que ocorre em cardíacos à noite. Por que à noite? Porque, quando a pessoa está deitada, há uma redistribuição dos líquidos do organismo, que afluem aos pulmões, congestionando-os. A pessoa acorda com dificuldade para respirar, o peito chia ou há sibilos. Mas, sentando, o líquido é drenado dos pulmões, e a respiração fica mais fácil. Certas formas de laringite alérgica também ocorrem mais à noite.


Finalmente existe um fator psicológico importante: uma dor, ou um mal-estar, que surgem à noite tendem a alarmar mais a pessoa. Ao sintoma em si une-se o arcaico temor da escuridão. Isto porque o relógio biológico é muito mais complicado do que os relógios comuns. Máquinas, nós? Talvez. Mas bem mais complicadas do que, por exemplo, um relógio de pêndulo.


Zero Hora (RS) 14/6/2008