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O Caso Jorge de Lima

 

Não há a menor dúvida de que existe, na literatura brasileira, um "caso" Jorge de Lima. Tendo sido, na opinião de muitos críticos e poetas do Brasil e de outras partes do mundo (incluindo o autor destas linhas), aquele que mais longe foi em nossa terra na feitura do verso e no uso da poesia como expressão de um povo e de uma nação, é de se espantar seja ele posto de lado - permanentemente de lado - pela presente comunidade literária do País. Em vida, teria sido normal, por ser católico praticante e ortodoxo, colocá-lo sob suspeita.


Foi o que aconteceu com Jackson de Figueiredo, com Alceu Amoroso Lima, mais ainda com Gustavo Corção e até com Murilo Mendes, que era um católico discreto. Só depois, no decorrer do regime militar que tivemos, católicos e esquerdistas fizeram mais ou menos as pazes. Mas, então, Jorge de Lima já estava morto havia 15 anos.


Como pode nosso maior poeta ser colocado, por gerações posteriores, em nível tão baixo? Como pode ser tão esquecido? Como pôde ter sido candidato à Academia Brasileira de Letras cinco vezes e não ter sido eleito? Perguntei certa vez a Clementino Fraga por que motivo a Academia Brasileira de Letras recusara Jorge de Lima.


Resposta: "Ele era um ingênuo. Imagine que, uma vez, sendo candidato, mandou-me um telegrama de quarenta palavras para dar-me os parabéns a uma neta minha, de dez anos, cujo aniversário um jornal noticiara. De outra vez, candidato, Jorge de Lima pediu ao grande escritor francês Bernanos, exilado no Brasil, para mandar cartas a acadêmicos brasileiros pedindo votos para ele. Bernanos escreveu ao amigo: "Você está acima disto, não precisa da Academia, mas vou fazer o que me pede".


Arthur Lundkvist, da Academia Nobel Sueca, em conversa sobre poesia, contou-me que, terminada a II Guerra Mundial, foi convidado por uma companhia marítima para ir à Índia, em navio que devia deter-se um dia no Rio de Janeiro. Admirador de Jorge de Lima, cujos poemas lera em inglês, espanhol e mesmo no pouco português que sabia, assim que o navio ancorou na Praça Mauá, saiu com o endereço de Jorge.


Soube que bastava entrar naquela Avenida - a Rio Branco - e lá no fim estava a Cinelândia, onde o médico Jorge de Lima trabalhava. Arthur e Jorge conversaram o dia todo, almoçaram juntos e, no fim da tarde, Arthur voltou ao navio e seguiu para a Índia. Mais tarde, na Suécia, conheci Arthur, tornei-me seu amigo e dele ouvi o seguinte: "De volta a Estocolmo, conversei com vários acadêmicos e chegamos à conclusão de que poderíamos dar o Prêmio Nobel a Jorge de Lima no fim dos anos 50". Mas Jorge morreu em 1952.


Poema de um povo, continua a "Invenção de Orfeu" a nos representar como autêntica "Invenção da verdade", numa estirpe greco-romano-luso-afro-indígena-brasileira, com a presença de versos de Virgílio na bela tradução de Odorico Mendes e uma "arma virunque cano", com um barão assinalado com Inês de Castro, Dante e Beatriz, até que "um cavalo todo feito em lava" golpeia o poema de alto a baixo.


Como no romance de Ponson du Terrail, do homem "que montou no cavalo e saiu galopando em todas as direções", também os versos de Jorge de Lima galopam em todas as direções. A Inês de Camões, juntamente com a figura de Virgilio, é a mesma e, contudo, diferente. Brasileira também, causa e efeito, mãe e filha.


"Invenção de Orfeu" é o poema da maturidade brasileira. Nossas dependências de uma tradição, de uma Igreja, de cânticos recebidos da África, de um estilo, de um modo de falar e de criar palavras, de um sistema de vida, de uma certa maneira de sentir o dia-a-dia, nossos desejos, nossas paisagens, nossas vogais. Tudo é matéria para Jorge de Lima extrair - de um passado que, além de nosso, tem profundos lanhos de outros tempos - a mensagem de um povo que é um estranho aglomerado de gente num espaço em ebulição.


A mais recente edição de "Invenção de Orfeu" é da Editora Record. Orelhas de Claufe Rodrigues. Ilustração de capa de Wassily Kandinsky, 1922.


Tribuna da Imprensa (RJ) 26/6/2007