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O bonequinho deu umas dormidinhas

 

Na quarta-feira passada, sabedor de que, no Senado da República, estaria sendo travada a grande batalha democrática da CPMF, liguei a TV cedo, mandei buscar farto suprimento de pipoca e, juro a vocês, assisti a todo o espetáculo, com exceção dos comparativamente raros momentos em que caí no sono e fui logo despertado por um dos muitos brados retumbantes dados no plenário. Eu não me perdoaria se perdesse aquelas cenas, que, para começar, só podiam acontecer no Brasil mesmo. Imagino que, em qualquer outro país, o espanto seria absoluto e muita gente não ia acreditar nem vendo.


Explico a razão do espanto. Por que estranhar que um tributo criado como "provisório" venha a ser exatamente isso - provisório? Se era para ser provisório, era para ser provisório, a não ser que isto seja compreendido nos mesmos termos em que o sistema solar é provisório, ou seja, um dia vai acabar, mas só quando não puder mais. Claro, estou fazendo um pouquinho de ironia, porque se sabe que ninguém aqui leva a sério essas bobagens e tacaram o "provisório" sabendo que suportamos bem o deboche, já temos até o vício de sermos passados para trás e em tudo se dá um jeitinho. Nome não tem importância, como já observou o poeta, acrescentando que, com qualquer outro nome, a rosa teria o mesmo perfume. Em nossa política, qualquer coisa, com qualquer outro nome, tem o mesmo fedor - e aí botaram "provisório".


De modo geral, o espetáculo apresentou altos e baixos. Algumas das falas foram muito boas e, mesmo quando se mentiu ou se distorceu a verdade, houve momentos inesquecíveis. O senador Mercadante fez tal estentor emocional pelos pobres que abafaria no Municipal. Suspeito que com ele não perderíamos um senador, mas ganharíamos um Plácido Domingo. Primeiro, desmentiu o presidente, que poucos dias antes, como já dissera que a saúde pública brasileira estava próxima da perfeição, disse também que o atendimento médico presidencial estava ao alcance de qualquer brasileiro. Ao contrário disso, entre esgares terríficos, ademanes trágicos e semitons magistrais, mencionou o miserê da saúde em seu Estado, que é o mais rico da federação - imaginem o resto. Não argumentou nada defensável, como fazia no tempo em que era senador mesmo, mas foi uma bela performance, vai para o trono.


Já outros e outras fizeram Camões e Machado rebolar nas tumbas. Isso quanto à linguagem usada, que às vezes, de tão estropiada, tartamudeada, violentada e desfavoravelmente comparável ao baixo neandertalês, se tornava ininteligível. Quanto aos argumentos, cheguei a começar a me ofender de novo, por ser considerado, como todos os outros governados, muito mais burro do que sou. Mas me veio um consolo, que partilho com vocês, os que são atingidos pela mesma ofensa. Não é que eles achem que nós sejamos burros, eles é que são burros. E assim, ao nos dirigirem seus solecismos enrolões, acham que estão se dirigindo a seus co-burros.


Mas não somos tão burros e já desconfiamos, com certeza com razão, que nada vai mudar, CPMF ou não CPMF. Dr. Mercadante, por exemplo, sabe perfeitamente, sim, que o percentual da CPMF "pago" pelas grandes empresas não é pago por elas e o que realmente vale como argumentação é o peso relativo que esse "pagamento" tem para quem o realiza. O que as grandes empresas fazem é desembolsar momentaneamente a CPMF, não pagá-la, porque não sai nenhum dinheiro dos ativos delas. O pagamento elas repassam e só pagam impostos quando compram algo, ou seja, quando estão na ponta do consumo. De resto, aqui como em quase toda parte (o exemplo dos bancos não vale, pornografia aqui não), rico não paga imposto, quem paga é quem está no fim da linha do repasse. Não vem ao caso o volume desembolsado pelas empresas, porque isso é incluído em seus custos e repassado. Só quem não pode repassar é quem paga, ou seja, assalariado e pobre mesmo. Arrenego da transferência de renda que está havendo com isso.


Uma resenha completa do evento, requereria várias colunas destas, o que não farei, porque prezo os leitores que tenho conseguido conservar. Não posso, contudo furtar-me à menção habitual ao presidente da República. Não quero referir-me à inépcia de sua negociação desde o começo, culminando com aquela carta vexatória, já no fim dos debates. Fico tendo alucinações em que, no futuro, o presidente mande seus projetos (aliás, isto é difícil, pois aqui nesta ditamole o negócio é medida provisória até para regulamentar o cafezinho) acompanhados de uma cartinha súplice. No caso do atual presidente, que não tem fama de ser um grande pagador de promessas e nem sempre faz o que diz que vai fazer, deve ser acrescido o pormenor de que quem acredita em promessa dele deve ter residido incomunicável no Nepal durante os últimos 15 anos, ou estar internado num hospício porque, depois dos 40, ainda crê em Papai Noel ou imagina que todo barbudo é santo.


Se ele, desde o primeiro mandato, tivesse iniciado as reformas que prometia com fogo às ventas e das quais não promoveu nenhuma, o vexame não teria acontecido. Já passou tempo mais do que suficiente para que se fizessem diversas reformas antes tidas como inadiáveis, a exemplo da tributária. Mas ele não fez as reformas (aliás, não fez nada, como veremos mais cedo ou mais tarde) e agora seu governo continua a funcionar como barata tonta, sem programas, sem investimentos e reagindo aos acontecimentos atabalhoadamente. E, finalmente, uma palavra às carpideiras da CPMF: não chorem, não. Não vai fazer falta nenhuma. Eles não precisam, mas num instante são capazes de um emprestimozinho compulsório, um confiscozinho à la Collor, algo assim bem meu Brasil brasileiro. A gente engole qualquer coisa e eles sabem disto.


O Globo (RJ) 16/12/2007

O Globo (RJ), 16/12/2007