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O ABC de Pound

 

O "ABC da literatura", de Ezra Pound, está entre o que de melhor produziu e ensaística literária do século XX. Em matéria de aferimento poético, principalmente, poucos outros livros os nossos tempos chegaram ao nível deste. Vale a pena, por exemplo, acompanhar o pensamento de Pound sobre Arnaud Daniel, o grande poeta do século XII.


Em capítulo a ele dedicado, as primeiras palavras de Pound são estas: "O Século Doze, ou mais exatamente o século cujo centro é o ano de 1200, legou-nos duas dádivas perfeitas: a igreja de San Zeno, em Verona, e as canzoni de Artaud Daniel".


Acrescenta Pound que os trovadores tinham substituídos a "alternação de quantidade" da poesia grega e romana pela "rima e acentuação" e que, nas canzoni de Artaud Daniel estavam, a um tempo, a beleza da rima de então e a música dos gregos e dos romanos, para os quais a rima pareceria vulgaridade.


Depois de dizer - o que não acha novidade, que Daniel deve ser colocado entre os mestres, afirma Pound: "Esta opinião esteve fora de moda por cerca de quinhentos anos; isso aconteceu principalmente, e faço essa caridosa concessão aos críticos, porque os poetas não eram capazes de ler sua linguagem, e porque os eruditos nada sabiam de poesia".


A opinião de que os eruditos, mesmo os que tratam de literatura, nada entendam de poesia é, em princípio, a de muitos poetas de qualquer tempo. Na mesma linha de Pound esteve Robert Graves, que tinha o poema feito de palavras em tal conta, julgava-o de uma categoria tão própria, incapaz de ser confundida com outra, que a análise puramente crítica, subordinada a critérios outros que não os exclusivamente poéticos para ele dificilmente chegava ao coração da matéria.


Pound passou sua inteira vida, em tudo o que escreveu, repudiando a não aceitação da poesia por motivos antes estabelecidos, tantas são as novidades que o poema novo pode conter. Jaz também aí a tese de que a inteligência nada tem a ver com a emoção, e que a emoção, em sua pureza mais pura, nada tem a ver com a inteligência.


Apreciando a poesia trovadoresca, de que Artaud Daniel foi um dos ápices, Pound repete, em relação a ele, a classificação de "miglior fabbo" que Dante dera a Daniel. Na integridade de sua posição trovadoresca, Artaud Daniel escrevia versos assim:


"Ieu sui Artaud qu'amas l´aura

E chatz la lebre com o boi

E nadi contra suberna."

(Eu sou Artaud que ama o vento

E caça a lebre com o boi

E nada contra a corrente.")


E que outro poeta da época, se não Daniel, poderia ter escrito este verso de perfeita contenção e claro lirismo:


"Teu sui Artaud qui plor e vou cantan."

(Eu sou Artaud que chora e vai cantando.")


Boa parte da poética de Pound foi haurida em fontes trovadorescas, e me parece imprescindível que se conheça aqui, de modo mais objetivo, o que foi aquela estranha floração de poemas que, no entorno do Século Doze e em línguas que apenas começavam a ganhar fisionomia própria, serviu de ligação entre a poesia romana e os tempos que, tendo começado então vieram até o começo do terceiro milênio.


Sob alguns aspectos, há no Brasil uma pujança de expressão vocabular que se assemelha à busca de Pound empós de uma nova poética. Jorge de Lima escreveu uma "Vidinha de Castro Alves", em que usou a técnica dos trovadores do Nordeste brasileiro, numa indicação de alguma das fontes à nossa disposição.


Não que o exemplo de Jorge de Lima deva ser necessariamente imitado, mas, na certa, merece estar sob a mira de poetas que andam atrás de formas brasileiras capazes de abrigar poemas novos. Guimarães Rosa, por outro lado, ergueu inúmeras possibilidades de a palavra ir além de si mesma, dando a "Grande Sertão: Veredas" um vigor que está indissoluvelmente ligado a palavras e frases brasileiras apanhadas na vida viva dos habitantes da região do Urucuia


Sendo a palavra a base de tudo, as transformações por que estamos passando, pode levar-nos a uma renovação também literária, também poética, durante a qual tentaremos renovar o nosso alforje de palavras. Delas vivemos e com elas sonhamos. A lição que Ezra Pound nos dá é de que no seu dia-a-dia, cria o povo uma linguagem capaz de duração, que um poeta busque dominar para dizer ao que veio. "ABC da literatura", de Ezra Pound, tem a tradução brasileira (de Augusto de Campos e José Paulo Paes). Lançada há mais de 30 anos pela Editora Cultrix. Merece reedição.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 20/11/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 20/11/2002