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Nossos livros lá fora

 

A carreira de "Macunaíma" na Europa mostra tanto o lado positivo quanto o negativo de uma literatura como a nossa, transportada para o exterior. Claro que, para todos os efeitos, somos "exóticos". Para os franceses, viemos de "là-bas". O exotismo se acentua quando o comentarista é anglo-saxônico. "The Times", comentando "Macunaíma", elogia o livro , chamando-o de "brilliant, genuine, exotic".


Sob certos aspectos, chega a palavra "exotic" a ser o reconhecimento de uma qualidade, embora não seja sempre usada com este propósito. Continuando, diz o jornal que o romance de Mário de Andrade é "the expression of a precarious moment of exhuberance in Brazilian culture".


Não adianta que se dê um sentido mais amplo e "precarious" que é isto mesmo: precário (isto é: dependente de "prece", possível de ser mudado por outrem) e lá está o Webster, que é o Aurélio deles, que não me deixa mentir. Numa exceção, a "Literary Review" considera "Macunaíma" um "Ulisses" brasileiro, com a fecundidade lingüística de "Finnegans Wake".


A palavra "exotic" não impede que, no texto da editora e na apreciação do tradutor, E. A Goodland, "Macunaíma" seja visto como o iniciador incontestável do hoje muito falado realismo mágico. Daí, a frase de um crítico americano, de haver "Macunaíma" influenciado tanto o sul-americano Garcia Márquez quanto o anglo-indiano Salman Rushdie.


No caso de livros nossos no exterior, só dois escritores brasileiros atingiram um nível de aceitação bem acima do de muitos autores famosos dos próprios países em que os nossos são traduzidos: Jorge Amado e Paulo Coelho.


Durante décadas, foi Jorge Amado lido, comentado, analisado como o intérprete de uma nova cultura, em Nova York, San Francisco e Los Angeles, bem como em Paris, Londres, Roma e em países como a China, o Japão, a Índia e a Austrália. O mesmo acontece hoje com Paulo Coelho, que substituiu Jorge nessa expansão de nossa literatura pelo mundo.


Muitos outros escritores brasileiros são hoje conhecidos no exterior. O que às vezes aconteceu foi um tradutor se apaixonar por um livro nosso, traduzi-lo e, em seguida, sair em busca de um editor. Foi o que se deu com Willian Grosmann, que era professor de geografia em São Paulo e, tendo lido as "Memórias póstumas de Brás Cubas", achou que era livro para ser divulgado e apreciado nos Estados Unidos. Estávamos no começo dos anos 50. Traduziu-o e publicou-o, às suas custas, no Brasil, fazendo em seguida sua distribuição diretamente a universidades americanas e a professores cuja opinião desejava. A edição comercial do livro sairia dois anos mais tarde, pela Noonday Press, em Nova York. O mesmo ocorreu com livros de Clarice Lispector e Ledo Ivo.


Na Inglaterra, o tradutor Giovanni Pontiero, professor de Literatura Brasileira na Universidade de Manchester, se apaixonou pela ficção de Clarice Lispector e pela poesia de Ledo Ivo, tendo traduzido e feito publicar, pela Editora Carcanet, livros dos dois.


O nome de Clarice passou, a partir de então, a ser analisado e comentado, sendo que, na França, foram feitos discos e, mais tarde, CDs, com histórias de Clarice Lispector na voz de Anouk Aimée. O romance de Ledo Ivo, "Ninho de cobras", Prêmio Walmap no Brasil, teve tradução na Inglaterra, com uma fortuna crítica de boa contextura.


O que nos faz falta é uma política sistemática de traduções, tática adotada por todos os países antenados com a cultura de sua gente. Dois exemplos dignos de análise: a França e os Estados Unidos. Vem aumentando, nos últimos anos, o número de livros franceses publicados no Brasil, muitos patrocinados pelo governo francês em combinação com editoras brasileiras.


São edições de textos de qualidade, úteis à cultura de qualquer país e que são aqui distribuídos a universidades e bibliotecas públicas. O mesmo acontece com os Estados Unidos, embora em nível menos acentuado e não tão visível quanto os programas do Usis (United States Information Service) de há alguns anos.


Os Ministérios da Cultura, da Educação e o Itamaraty poderiam formular programas que utilizassem nossas representações diplomáticas no exterior como elementos dinâmicos de ação cultural. Ou que se organizasse um órgão específico e claro, com suficiente independência para não se deixar prender no cipoal da burocracia.


Continuaremos, naturalmente, a contar com o entusiasmo individual de nossos tradutores lá fora. Vale a pena lembrar que, no caso de Willian Grossmann, depois de ter conhecido, traduzido e publicado o livro de Machado de Assis, teve sua vida inteiramente mudada. Abandonou a geografia e passou a se especializar em literatura brasileira e no seu principal escritor.


Machadiano completo foi professor na Universidade de Nova York, onde promovia debates sobre Machado. Foi ele quem montou, com seus alunos de literatura brasileira, um julgamento, a que assisti, para saber se Capitu na realidade traiu, ou não. O ato apresentou um acusador, uma advogada de defesa e um corpo de jurados. Tinha a sala cerca de 40 alunos. Os jurados decidiram pela inocência de Capitu.


Também a tradução de "Macunaíma", de Mário de Andrade, foi obra de amor. Em curta nota introdutória à edição inglesa (da Quartet Books), revela E. A Goodlan a dedicação com que se entregou à tradução, considerando-a como se poderia chamar de missão, a de levar uma obra-prima literária de um idioma para outro, no esforço de tornar acessível, a público maior, a força de outros pensamentos e emoções, representativos de povos diferentes, e com interpretações da presença do homem sobre a terra.


Uma resposta muito espontânea ao uso, pelos franceses, da palavra "exótico", em se tratando de terras estranhas, foi a frase de uma jovem africana que, depois de um mês na França, deu uma entrevista sobre o modo como via a cidade. Perguntaram-lhe o que achava de Paris. Respondeu: "Paris? Paris é uma cidade exótica."


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 04/06/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 04/06/2002