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No céu com diamantes

 

Talvez eu ande falando demais de gente que já morreu. Mas não posso deixar de saudar, por exemplo, Aldir Blanc e Paulo Gustavo, dois grandes artistas cujas leis de incentivo à cultura que levam seus nomes foram reavaliadas pelos deputados que negaram apoio ao veto do presidente. Como não posso deixar de dizer que Sergio Paulo Rouanet, falecido outro dia, vai fazer muita falta ao Brasil.

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No início do século, o editor Roberto Feith lançou uma versão em português de Granta, a famosa revista literária britânica de David Graham. O nº 2 de Granta trazia textos sobre viagens. Em um deles, Arnaldo Jabor desafiava as ideias geladas dos escritores otimistas da época escrevendo sobre uma viagem de ácido, em plena ditadura militar começada em 1964. O texto se chamava 'A viagem com Lucy no céu de diamantes', o título da bela canção hippie dos Beatles.

'O fascínio exercido pelo outro lugar', escrevia Feith na apresentação da revista, 'se expressa nos textos deste volume em duas poderosas vertentes: memória e imaginação'. E Arnaldo iniciava seu corajoso e magnífico texto: 'A paisagem começou a tremer como gelatina. Os morros em volta da praia dançavam rumba. Eu pensei: bateu. Bateu o LSD - finalmente vou conhecer a loucura'. E seguia: 'Eu tinha tomado meu primeiro ácido lisérgico, o sunshine, para esquecer o Ato nº 5, decretado umas semanas antes. A barra começou a pesar mesmo a partir daí'.

Para nosso espanto de esquerdistas fiéis, Arnaldo escrevia que tinha 'orgulho de ter tomado ácido; acho que me fez bem, no final das contas. Mas naquela viagem, na ditadura horrenda, eu queria mesmo era ver 'Lucy no céu com diamantes', em vez das fuças dos fascistas que enchiam os jornais censurados'. Parecido com agora, não é?

O texto era uma provocação aos heróis revolucionários e um aparente encontro com o desbunde que entrava na moda: 'Minhas pernas ficavam quase transparentes e finas como tentáculos de um extraterrestre ou de uma grande lula ali naufragada na beira do mar de Mambucaba, longe dos milicos que nos tinham tirado a liberdade, a esperança, a beleza'. E na página seguinte: 'Eu buscara um desbunde alegre e florido como o dos americanos do flower power; mas saquei ali que a devastação de 68 seria tão brutal como a tortura que enchia os quartéis de gritos. O pânico cresceu'.

'Então eu vi, lambidos pela maré, uns soldados deitados que me apontavam fuzis; eu sabia que eram troncos de árvores ali jogados, mas mesmo assim eu 'via' realmente os soldados me apontando as armas como se estivessem desembarcando para me fuzilar e eu ouvia a voz de Alberto Cury, o locutor oficial, lendo o Ato nº 5 com sua voz linda que me tirara o direito à vida. (...) Aí eu entendi com horror que a política ia virar uma piada ridícula dali para a frente, um pesadelo cômico; hippie aqui era uma espécie de exilado mental, um cassado da mente, um preso político solto na rua'.

Arnaldo nos contava então as últimas invenções dos militares para fazer os estudantes falarem. Eram tão cruéis que faziam 'você denunciar a própria mãe'. Ele intuía, ali na praia, 'que alguma coisa se fechara para sempre, que uma 'alma de violino' se quebrara para sempre no Brasil, um buraco no tempo matara uma vocação brasileira pura que tinha existido e que se apagara'.

Eu o conhecia bem, sabia que Arnaldo ia chutar o balde do bom-mocismo estudantil. Não se tratava de insistir num mundo que já havia acabado, que não tinha mais chance de existir. Mas voltar a produzir a ideia de uma democracia original, mesmo que não fosse uma 'alma de violino' baseada nas possibilidades de um futuro de luz, em que a luz não estivesse no fim de túnel algum. Porque a luz éramos nós mesmos.

O Globo, 10/07/2022