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Muito obrigado pela paciência

 

Ogoverno acaba de completar um ano e meio e nos preparamos para as eleições municipais. Armaram uma festinha para comemorar os 18 meses e nos contaram como, naturalmente, não fizeram tudo o que queriam, mas fizeram muito, considerando as duras contingências que a realidade impõe. O presidente chegou a dizer, com quase infinita bondade (a infinita de verdade é apanágio de Deus e creio que nem mesmo o ministro Gushiken imagina que o imperador do Japão partilhe dela), praticamente com um suspiro audível para toda a nação, que a política é a arte da paciência e que o governo não deve perder a paciência. Sobretudo com as críticas da imprensa - parece que sugeriu também -, pois estas ofendem e magoam ainda mais.


Particularmente, fico aliviado com a exortação presidencial. Já pensaram se o governo perdesse a paciência comigo ou até com vocês, os que também criticam ou reclamam, mesmo não sendo da imprensa? Afinal, quem governa é o governo e os governados somos nós. Gostar ou não gostar de alguma coisa é certamente um privilégio que o governo nos outorga. Na minha irresponsável ignorância, desconheço a lei com que o governo (ou o Estado, que aqui é a mesma coisa) nos faculta gostar ou não gostar. É com certeza essa lei, bem como o espírito democrático inerente ao governo, que nos garante que não virá aí uma medida provisória, instrumento principal de ação legislativa a que hoje somos submetidos (na ditadura do Estado Novo se chamava decreto-lei, mas isso era na ditadura, agora é muito diferente), nos desautorizando a gostar ou não gostar de algo sem permissão, depois de contratarmos um despachante que nos possibilite tirar a papelada necessária, embora, numa confusão normal em qualquer administração, parte do governo assegure que não há tanta burocracia aqui e parte denuncie essa mesma burocracia. De qualquer maneira, vou logo agradecendo, porque, se o governo perdesse a paciência, nada mais justo que me proibisse de dizer que não gostei disso ou daquilo, ou ordenasse que o jornal deixasse de publicar o que escrevo. Obrigado, muito obrigado, menos um desempregado, neste país que a passos largos se aproxima do pleno emprego. A família que depende de mim também agradece a concessão. Estamos com a cesta básica garantida, pelo menos enquanto durar a paciência do governo, que, como também ouso dizer da paciência do imperador do Japão, não é eterna.


Pedindo desculpas por falar em meu caso particular, mas com a consciência apaziguada por achar que muitos outros se encontram em situação parecida, solicito também vênia ao governo para expor (e estar pronto a desdizer-me, se ele perder a paciência, pois não quero ser subversivo) o ponto de vista de que não mudei. Tenho sido acusado de haver mudado. Costumava fazer tantas críticas ao governo passado, manifestei tanta esperança no governo atual e agora faço críticas ao presente. Como não existe mais o ouro de Moscou para me sustentar e não acho muito provável que Wall Street resolva me conceder um estipêndio para que eu defenda seus interesses, talvez fique difícil entender por que mudei tanto, sou outra pessoa, tenho outras convicções.


Sim, devo ter mudado. Fiquei mais careca, as pelancas do pescoço aumentaram, deixei de fumar e é só para não dizerem que perdi de todo a coerência que continuo a comprar meus jornais na banca do Carlinhos, aqui perto de casa, e meus remédios na venerável farmácia Edith (daqui a pouco eu passo lá para pegar minhas revistinhas e minhas pílulas para reumatismo como pagamento pela promoção, pois nós, jornalistas venais, levamos vantagem em tudo e não vou citar os nomes de dois estabelecimentos comerciais assim de graça). Mas confesso que enfrentei dificuldades em achar que minha maneira de pensar ou agir mudou. Lendo, porém, o que o dr. Dirceu disse, percebo que mudei muito, o PT é que não mudou nada. Assumiu e começou a mostrar logo que veio para cumprir o que disse que estaria aí para fazer. Como o direito de pensar também é uma benemerência do governo, registro minha gratidão e longe de mim querer prejudicar, com as minhas mudanças atarantadas, a performance do Partido-Estado nas eleições municipais. Força para ele, até porque estou ficando com grande receio de que, perdendo as eleições, ele perca também a paciência.


Ia dizer hoje que andei chocado com o fato de que prédios residenciais foram abandonados, aqui no Rio, depois que bandidos (se não for politicamnte correto o emprego desta palavra, por favor, mudem-na, eis que, se não quero que o governo perca a paciência, muito menos desejo que os senhores bandidos também o façam, apesar de todos contarmos com eficiente proteção policial para nos garantir - como garantiu que os moradores do Morro do Adeus fugissem de suas moradias em perfeita desordem) invadiram e depredaram suas moradias. Também ia dizer que achava meio estranho o governo afirmar que fez tantas reformas e que me surpreendia com a curiosa circunstância de que o faturamento das 500 maiores empresas brasileiras subiu de 2 bilhões em 2002 para 21 bilhões em 2003, apesar de nossa renda haver baixado. A que ponto chegarão minha cegueira, má vontade e/ou venalidade? Se isso não é progresso, não se sabe mais o que é. Nós é que nunca tivemos paciência com os governos, isso sim, chega de exigir sacrifício deles. Os impostos também subiram bastante, pois nos beneficiaram com a reforma tributária. Enfim, o espetáculo do crescimento está aí, só não vê quem não quer. Haja paciência no governo. Creio que, apesar de não ter procuração, falo por muitos compatriotas. Obrigado, obrigado, presidente, obrigado, governo, por tanta paciência conosco. E vamos procurar não atrapalhar mais, povo atrapalha muito.


 


O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 11/07/2004

O Globo (Rio de Janeiro - RJ), 11/07/2004