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A minha segunda dose

 

Eu devia estar contente. Ontem, gastei apenas 10 minutos para, sem fila, tomar minha segunda dose de CoronaVac. Por que não comemorar a entrada no pequeno grupo dos brasileiros que tiveram essa sorte?

Porque o que há em volta é de entristecer: a semana que passou constituiu-se na mais letal da pandemia, e o país foi considerado um risco para o mundo. Além da carência de leitos, remédios e insumos, agora faltam até covas e, sem necrotérios, os corpos estão sendo “enterrados” em contêineres.

São mais de 265 mil mortes em um ano causadas pela Covid-19, ou 1.582 em 24 horas; ou um óbito a cada 50 segundos, com curva ascendente. Em janeiro e fevereiro, as mortes pelo vírus subiram 71%.

O SUS tem mais de 80% dos leitos de UTI ocupados em pelo menos 17 capitais do país; e a Organização Mundial da Saúde adverte que o Brasil vive “uma tragédia” e não sabe como enfrentá-la. Para quatro ex-ministros da Saúde, falta liderança; para secretários estaduais, vivemos o “pior momento” da pandemia e, por isso, pedem toque de recolher das 20h às 6h.

O pior é que esses números já devem estar superados quando eu acabar de escrever este artigo. E eles escondem nomes, alguns de pessoas queridas, compondo um “memorial de despedidas”, segundo relatos obtidos por Janaína Figueiredo e Maiá Menezes. Às vezes são os derradeiros diálogos, como os do médico Ricardo Cruz com sua mulher:

— Piorei muito. O pulmão não responde. Prepare-se para o pior, ok?

E, já sem fôlego, deixou por escrito suas últimas recomendações.

Lendo, me lembrei de ter participado de alguns debates culturais que o doutor Ricardo promovia e animava nos hospitais onde clinicava. Foi impossível não chorar. E não me envergonho de confessar. Vergonha eu tenho de um presidente que debocha dos que choram seus mortos. Num vídeo que viralizou nas redes sociais, o romancista e jornalista português Miguel Sousa Tavares faz duras críticas a Bolsonaro.

Muito lido no Brasil, que conhece bem e onde admira personagens como Drummond, Kubitschek, Chico Buarque e Oscar Niemeyer, o autor do clássico “Equador” diz que “dói a alma” constatar que o Brasil esteja sendo governado por um “fantoche, alguém absolutamente ignorante e cruel não só do ponto de vista político, mas também humano”.

Miguel disse tudo isso e muito mais, antes de conhecer a última do presidente: o desprezo pelos que sofrem por suas perdas. Bolsonaro demonstrou mais uma vez que sua personalidade não é feita só de ignorância, mas também de má-fé e mau caráter.

Em meio a tanta omissão criminosa, não se pode esquecer e nunca é demais exaltar a voz da ciência — a “Moção médica em prol da vacina já”, em que 2.168 profissionais do Rio manifestaram-se preocupados com a condução da pandemia no estado e no país. Ao se referir ao número escandaloso de mortes, o texto ressalta: ISSO NÃO PODE CONTINUAR, assim mesmo, em caixa-alta, como se fosse um grito.

É possível que o leitor, como eu, já tenha recorrido a um desses importantes nomes num momento de dor ou aflição. Ler agora essa demonstração de coragem cívica de nossa classe médica é um conforto.

O Globo, 09/03/2021