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Migalha de poder

 

No Rio, costumo dar uma caminhada matinal pelos jardins do Palácio do Catete, um lugar belíssimo e histórico - no Palácio moraram vários presidentes, inclusive Getúlio Vargas. Os jardins são cercados por uma alta grade. Só se pode entrar por um dos dois portões, e foi o que eu fiz, há alguns dias. O guarda que estava lá não me deixou passar: só depois das 8h, ele disse. Olhei o relógio: passavam cinco minutos das 8h, e foi o que eu disse a ele. Nesse momento, apareceu um homem que também queria entrar e que disse a mesma coisa: estava na hora. Mas o guarda não cederia tão facilmente. Disse que precisaria avisar seu superior. Ao que o homem que estava a meu lado reclamou: mas, afinal, o que regulava a entrada era o horário ou o tal superior? Não houve jeito. Só entramos depois que o guardião do paraíso falou com o superior (Deus?).


O guarda dos jardins do Catete e seu superior detêm poder. Uma migalha de poder, certamente, mas poder. E, como é muito comum entre pessoas que detêm uma migalha de poder, ele faria render esta migalha o máximo possível, ignorando inclusive o regulamento. O guarda e o superior mostraram-nos que quem mandava ali não era a lógica ou o relógio, eram eles. Agora, perguntem-se: quantas vezes vocês já passaram por situações assim, numa loja, num banco, numa repartição pública.


Poder não é uma coisa ruim; ruim é não poder fazer as coisas. Precisamos de pessoas que possam fazer aquilo que é necessário para outras pessoas, para a sociedade. O problema está no uso que certas pessoas fazem do poder, sobretudo de sua migalha de poder. Transformam-na numa compensação para toda espécie de frustrações. O guarda dos jardins do Catete talvez não ganhe muito, talvez tenha problemas com a família, com rivais, com seja lá quem for. Resultado: descarrega nos caras que aparecem no portão do território que ele supostamente controla. Isso no Rio, em São Paulo, em Porto Alegre, em qualquer lugar.


O que fazem as pessoas? Revoltam-se, como o caso do homem que discutiu com o guarda. Ou, quando não têm o regulamento a seu lado, recorrem ao jeitinho que é o antídoto brasileiro para a rigidez da burocracia. Mas nada disso serve. Nada disso é democrático. A verdade é que herdamos uma carga de autoritarismo vinda dos tempos da colônia. Mas estamos aprendendo a mudar. E um dia entraremos nos jardins do Palácio do Catete às oito horas em ponto.


Sempre digo: um dos prazeres de escrever em Zero Hora são as mensagens que recebemos de leitores cultos e inteligentes (redundância: leitor de ZH só pode ser culto e inteligente). Entre outras pessoas, e abordando vários assuntos, escreveram-me Roseli Gertum Becker, Luiz Augusto Rodrigues, Viviane, Ângela (nem todos colocam sobrenome, o que não tem importância), Duílio de Ávila Bêrni, José Sanchez, Pércio de Moraes Branco, Alessandro Castro, Cristina Regner, Maria Augusta, Ana Maria Rossi, Maria Alice Mendes, Wanerley Casani, José Diogo Cyrillo da Silva, Sidney Charles Day, Juliana Peres, Lea Japur, Patricia Piccoloto. Cada uma dessas mensagens daria um texto, e brilhante. Pena que o espaço não é suficiente.


E os nomes que condicionam destinos? O Romeu Finato, que é jornalista e imortal (torce para o Grêmio - mas, meu caro Romeu, como é que um Finato pode ser imortal? Mil perdões) fala de um médico que durante a ditadura era acusado de colaborar com torturadores. Nome dele: Harry Shibata (se fosse Harry Chicote seria pior). Diz o Sérgio Chaves: "Agora entendo o porquê de toda esta celeuma em torno da compra da nova morada da governadora Yeda Crusius, com sobras, dizem, da campanha eleitoral. O nome do proprietário é Eduardo Laranja". E a Lucy Geny: "O nome do excelente veterinário que atende minha fofíssima cachorrinha é César de Castro Cação". Seria ainda melhor se ele fosse piscicultor, Lucy. Escreve o médico Mauro Curi, que, segundo um amigo dele, "Não há mau ro que não se curi", acrescentando que há um colega cardiologista chamado Marcos Cardia. E é claro que o Garipô Selistre tinha de ser do DMLU. Gari, pô.


Não resta dúvida: a editora Record, do Rio, dirigida pela notável Luciana Villas Boas, descobriu os talentos literários gaúchos. Agora é a vez do Jerônimo Teixeira, que trabalhou aqui em ZH e que atualmente reside em São Paulo, onde é colaborador da Veja. Jerônimo estará lançando na Livraria Cultura, nesta segunda, dia 7, às 19h, o seu livro de contos Antes do Circo. Quem já conhecia o talento literário de Jerônimo através da novela As Horas Podres vai aplaudir também o contista Jerônimo, que domina com absoluta segurança a história curta. A Record também está lançando, da Marcia Tiburi, mestre e doutora em Filosofia, o criativo Filosofia em Comum, um texto que, de maneira amena e divertida, nos introduz ao método filosófico. E, last but not least, o consagrado João Gilberto Noll também lança, pela Record, Acenos e Afagos, romance que conta a história de um homem em busca de sua identidade.


Zero Hora (RS) 6/7/2008