Anthony Hopkins acaba de publicar sua, como se diz, autobiografia, "Até Que Deu Tudo Certo". Bem, como praticante da biografia e estudioso do gênero, posso garantir que o que chamamos de autobiografia não existe. Supondo que uma autobiografia seja uma biografia do próprio autor, só faria jus a essa definição se usasse os mesmos recursos de um biógrafo de verdade ao biografar alguém, não? Entre outros, conversar com pelo menos 200 pessoas que conviveram com o biografado, ouvir suas memórias, arrancar suas informações. Mas o dito autobiógrafo não faz isto. Ouve apenas a si mesmo, à sua memória. E esta nem sempre é confiável —tende a "esquecer" certas passagens.
Em sua crítica do livro na Folha, Ana Paula Sousa observa que Hopkins classifica seu alcoolismo nos anos 1970 como tendo chegado "ao fundo do poço". E estranha, com razão, como ele descreve "o fim da dependência como quase num passe de mágica". "O desejo de beber se foi", diz Hopkins, e ele "encontrou Deus". É no que dá só depender da própria memória. Um biógrafo de verdade dedicaria capítulos ao que deve ter sido a luta de Hopkins para sair do fundo do poço.
Muitos astros do cinema foram alcoólatras: Buster Keaton, Spencer Tracy, Montgomery Clift, Ava Gardner, Elizabeth Taylor, Sterling Hayden, Rita Hayworth, William Holden, Errol Flynn, John Cassavetes, Carrie Fischer, Leonard Nemoy, Robin Williams, Drew Barrymore. Os britânicos, como Hopkins, foram legião: Richard Burton, Richard Harris, Peter O’Toole, Albert Finney, Oliver Reed. Todos têm biografias com passagens dolorosíssimas sobre suas dependências.
Nenhum deles teve a felicidade de Hopkins: acordar um dia, magicamente, "sem desejo de beber" —quando, na vida real, a necessidade matinal de beber é aguda, por se ter passado as últimas horas dormindo. E, como bônus, ele ainda "encontrou Deus".
Hopkins devia classificar seu livro não como autobiografia, mas como uma memória —a sua própria e só ela. E não muito precisa, como soem ser as memórias.