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Medicina e indústria: a imprecisa fronteira

 

Participei, certa vez, num evento sobre saúde pública realizado nos Estados Unidos, em que várias pesquisas foram apresentadas. Uma delas tinha como tema a dieta láctea no tratamento da hipertensão arterial. Chamava a atenção a insistência do palestrante sobre os benefícios da referida dieta. Terminada a apresentação, ouvi um dos médicos comentar com outro que a veemência era compreensível: o conferencista tinha sido financiado pela poderosa indústria americana do leite. Hoje, isto não seria uma revelação inesperada: os autores de trabalhos na área médica devem declarar prováveis interesses envolvidos em seu trabalho. O que nos remete a um assunto correlato, mas igualmente discutido: a relação entre indústria farmacêutica e médicos.


A prática de dar brindes aos profissionais (canetas, pastas), além, claro, das amostras grátis, é antiga. Uma pesquisa realizada entre maio e junho de 2000, com 181 médicos residentes da Escola Médica de Virgínia (EUA), revelou que 97% deles carregavam pelo menos um brinde com logo de empresa farmacêutica no jaleco. Este costume foi crescendo, o que não é de admirar, porque estamos falando de uma das indústrias mais poderosas do mundo, que lá pelas tantas estava pagando viagens (em primeira classe) e estadias em resorts, inclusive para acompanhantes. E a intervenção na divulgação científica foi num crescendo. Por exemplo, profissionais conhecidos eram convidados para assinar trabalhos que outros pesquisadores, menos famosos, tinham elaborado. E, o que causou ainda mais polêmica, certas corporações financiavam pesquisas destinadas a mostrar que produtos concorrentes não funcionavam. Segundo artigo publicado na revista norte-americana Nature cerca de 10% de 2.212 pesquisadores entrevistados conheciam casos de falsificação de resultados, plágio ou invenção de dados, 37% dos quais nunca foram denunciados, por medo de represálias ou de comprometer orçamentos coletivos.


Mas essa situação pode estar mudando. Segundo declarou Gabriel Tannus, presidente executivo da Interfarma, que congrega 29 grandes laboratórios, responsáveis por 54% do mercado farmacêutico no país, um novo código de ética está sendo divulgado. Entre outras coisas, proíbe gratificações para os médicos que receitarem determinados produtos. A indústria farmacêutica não poderá interferir na programação de eventos científicos e deverá se restringir ao transporte (em classe econômica) e alojamento dos convidados nesses eventos.


A indústria farmacêutica depende do progresso científico e tem direito de estimulá-lo, de forma similar ao estímulo que se dá à área cultural pela Lei Rouanet. Mas estímulo não é mordomia, não é suborno, não é distorção. A fronteira entre o que é ético e o que é guerra comercial aqui é pouco precisa. É preciso defini-la bem. Será bom para a medicina, será bom para a indústria e será bom para a população que, comprando os remédios, financia essas práticas todas.


Zero Hora (RS) 12/7/2008