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As mães de cada um

 

Nosso patriarcalismo nos faz procurar sempre um poderoso que seja culpado por tudo o que nos contraria

Leio sempre as cartas de leitores às publicações que leio. Elas são escritas por necessidades às vezes difíceis de se avaliar, mas me faz bem lê-las. No último Dia das Mães, lembrei-me de um recorte que guardo há dois anos. Publicada durante o anúncio inaugural da pandemia, no início de 2020, a carta de Sergio Alves, leitor de O GLOBO, dizia assim:

“Nunca mais nossas conversas, nossas piadas, nossos segredos; para sempre as minhas boas recordações. Nunca mais nossos passeios, nossas caminhadas; para sempre as marcas dos momentos tão felizes juntos. Nunca mais as gargalhadas; para sempre os sons da nossa cumplicidade. Nunca mais o café da manhã e a mesa do almoço com as coisas de que ela gostava; para sempre o carinho com que sempre fiz tudo, minha dedicação, meu amor. Nunca mais o sol que ela era na minha vida e na de todos que a conheciam; mas o sol está brilhando junto com ela para sempre. Estou falando da minha mãe, que se foi sem dor ou despedidas, vítima de Covid-19”.

Além do cuidado literário, a carta está carregada de comovente conformismo. Uma despedida serena ainda que dolorosa, consequência de um estado de espírito que cultivamos desde muito tempo. Preocupados com nosso quinhão na cracolândia, nunca pensamos em colaborar de fato com o projeto econômico de FHC. Foi um jornalista, pensador e cineasta, Arnaldo Jabor, que se manifestou com clareza: “Nosso egoísmo descrê de qualquer interesse público. Nosso amor ao abstrato e horror ao concreto também não colaboram. A nossa burrice congênita não ajuda, já que desconfia da razão com tintas visíveis de um protofascismo rancoroso”. Torcíamos pela Morte, embora nos manifestássemos a favor da Vida.

Como nasci em 1940, só já maduro descobri que, no primeiro sufrágio depois da queda do ditador de então, o Brasil havia eleito, como presidente da redemocratização, o ministro da Guerra que flertara com Adolf Hitler. Na eleição seguinte, foi o próprio ex-ditador, responsável por um regime de crimes hediondos, que voltou ao poder por escolha popular. Assim como, desde que começara a se desfazer o pesadelo do regime de 1964, aceitamos a paz dos arranjos em que ninguém era culpado de nada e muito menos condenado por mal praticado. Quando nosso herói morreu, quem o substituiu no poder que nunca assumira foi o líder do partido da ditadura. Na primeira eleição direta, elegemos outra vez um aventureiro que deixou o governo muito antes de completar seu mandato. Nossa cultura política eximia o eleitor de qualquer responsabilidade pelo nosso futuro.

O Brasil teria potencialmente muito a contribuir com o progresso da humanidade. Fomos criados e nos desenvolvemos como nação na soma de todas as nossas diferenças, a diversidade de nossa formação. Não só como cor da pele ou aparente etnia, mas também como alternativas de toda natureza, em todos os campos, desde aqueles em que nascemos até os que construímos ao longo de nossa história. Não só devemos nos orgulhar dessa multiplicidade e saudar a oportunidade, como também nos esforçarmos para que ela se torne o caráter dominante do país.

Nosso clássico patriarcalismo, no entanto, nos faz procurar sempre um poderoso que seja o misterioso culpado por tudo o que nos contraria. Entre outras vantagens, evitamos assim encarar o desamor do povo, a quem juramos amar. Quando perdemos uma eleição democrática ou somos vítimas de uma violência contra a qual o povo não reage, tratamos de anunciar que ele foi enganado por seus inimigos, aqueles que estão também e sempre tramando contra nós. Este é o frágil consolo de nossa história, o papel lendário de nossa mãe solar.

 

O Globo, 22/05/2022