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Machado e Rosa

 

Teremos, dentro de dois anos, duas datas literárias da maior relevância, pois o ano de 2008 lembrará dois acontecimentos marcantes; o centenário da morte de Machado de Assis e o centenário do nascimento de Guimarães Rosa. Pode-se imaginar, nos limites da saída e do ingresso neste vale de sonhos, um encontro de Machado de Assis e Guimarães Rosa, o primeiro dizendo ao segundo: "Toma, Rosa - agora o facho é teu."


De Machado, temos tratado muito, e muito mais o faremos. De Rosa, nem tanto, e mais precisamos fazê-lo. Muitos de nós custamos a nos refazer da notícia que tivemos naquele fim de domingo, de 18 de setembro de 1967, quando fomos avisados da morte súbita de Guimarães Rosa. Acompanhamos o corpo até a Academia Brasileira de Letras, em que Austragésilo de Athayde fez sua oração de despedida.


No meu caso particular o sentimento de perda foi grande porque, nas seis semanas anteriores, passáramos - ele, Jorge Amado e eu - em reuniões diárias, discutindo os romances que se candidatavam ao Prêmio Nacional Walmap. Éramos os três julgadores do Prêmio que recebera perto de trezentos romances. Sob pseudônimo, em busca de láurea.


Lembro-me da alegria com que Rosa falava dos bons candidatos que então seriam premiados: Oswaldo França Jr., Maria Alice Barroso, Otávio Melo Alvarenga, Ricardo Guilherme Dicke, Wanda Fabian, Paulo Jacob e Paulo Rangel.


A gradativa compreensão de que ele morrera deixou-nos silenciosos naqueles primeiros dias sem Rosa. Talvez muitos dos que o líamos o julgássemos de fato imortal. Como, de Cordisburgo (cidade do coração, o nome está dizendo), através das palavras da gente das Gerais, pôde surgir esse João que nos justifica e faz com que o Brasil seja mais do que um simples aglomerado de gente? Porque, de Cordisburgo vindo e a Cordisburgo referindo o que fazia, Guimarães Rosa é uma prova de que o Brasil atingiu ponto avançado na sua "hominização".


E o país chega a esse nível, como era natural que chegasse, através da palavra, da lingüística, não a simples matéria dos didáticos, mas a dos criadores e dos que reinventam a realidade com palavras. É em João Guimarães Rosa que compreendemos, em seu sentido pleno e total, a lingüística tal como a defende Claude Lévy-Strauss, a lingüística base de um avanço da sociedade, a lingüística-estrutura de tudo, não como volta ao velho nominalismo filosófico, mas como compreensão de novas realidades - novas e ecumênicas - e como resultado de uma visão estrutural e estruturada das coisas.


No momento em que, na sala da ABL, me postei diante do corpo de Guimarães Rosa, na manhã daquele novembro de 1967, pensei em Riobaldo e Diadorim, lembrei-me das palavras que ele havia inventado - reminisção, tremulentos, tutaméia, sozinhidão, desenredo, historiinha, recordei as sintaxes novidadeiras da gente do Urucuia e da região do Chico. Havíamos tido Rosa e, por meio dele, ganhamos chão e ar.


Firmes e nítidos. Que de tutaméias se fazem os mundos. Tutaméia, tutameemos, que a expressividade da língua, já agora brasileira, ganhou estacadas e estacatos no momento em que João Guimarães Rosa começou a usá-la e a escrevê-la, não apenas para que os termos engenhados iluminem a realidade, mas para que a língua toda viesse preencher os vazio da linguagem, substituir a ida pela vinda.


Escrevendo como escreveu, Rosa como que nos criou a todos de novo, deu maior firmeza ao Brasil como país. Fazendo-se sons e renovando significados, João Guimarães Rosa também fez o Brasil. Fez uma fala, uma língua, um idioma, deu uma língua estruturalmente João, estruturalmente "do Chico", síntese franciscana de vários Brasis.


Estruturalisticamente, Rosa compunha, decompunha, recompunha, inovando, mas sem perder as raízes da língua que, em certos trechos de "Grande Sertão - Veredas", parece levar-nos a Pero Vaz de Caminha e trazer de volta um ritmo inicial que, ao longo de todas as mudanças, jamais perdemos de todo.


Entre uma fala e outra, entre uma e outra ação de suas histórias, a palavra pode vestir uma roupa nova, mas continua sendo a mesma palavra, dando força a personagens e criando, como no julgamento final da gente de Urucuia, um ambiente de extraordinário vigor narrativo. Porque a verdade é que o autor não nos deixa esquecer que as palavras estão narrando e conseguem fazê-lo dando a impressão de que não se repetem, porque sua visão de narrador está acima de tudo como um deus grego que acompanhasse de perto as longas caminhadas, as lutas, os amores, as mortes, os atos de coragem, os fracassos, as paixões aparentemente sem razão e com toda a certeza veementes.


Quase quarenta anos depois que morreu, podemos sentir como sua obra se assenhorou do imaginário brasileiro. E é curioso como a palavra "sertão" nos pegou pelo gasnete e não nos larga mais. Desde que Euclides da Cunha transformou a guerra de Canudos numa tragédia, nunca mais nos livramos da consciência de que permanecemos separados entre litoral e o sertão, essas largas regiões em que os governos - federal, estadual, municipal - não funcionam.


Vivemos entre litoral e sertão, com a largueza de significados que a palavra "sertão" continua tendo. E é para isto que existe o escritor. Para mostrar, denunciando. Canudos, Urucuia, a Amazônia. E escritores como Euclides e João Guimarães Rosa, arrancam de si mesmos, de nós, do país todo, de nossos rios e nosso chão, de nossa temporalidade, um país que reconhecemos como nosso e pelo qual temos de lutar.


O ano de 2008 permitirá que, mais uma vez nos curvemos sobre Machado e Guimarães Rosa como representantes de dois aspectos diversos de nossa realidade que eles revelaram com a força de livros que são a base de nossa literatura.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 21/2/2006